segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O seu ano é novo?


É exatamente meia-noite. Procuro as palavras e encontro o silêncio. Um domingo-segunda. Estou no décimo primeiro andar e vejo Fortaleza por todos os lados. Diante dos meus olhos, um avião acaba de decolar em direção ao céu apinhado de estrelas. A vastidão me cerca. Finalmente, posso manter os pés acima do chão. Encontrei um lugar no mundo sem a mínima conexão com o espaço. E não é aqui, é um todo canto em que viajo e volto. Sou andante como as águas de um rio. Margeada apenas por um guarda-corpo que cria uma imagem turva de limite, de fronteira. Não sabia que além de guarda-roupa também inventariam algo denominado guarda-corpo - um muro vazado que circunda espaços da cobertura de edifícios. Acho que sabem o que fazem, nem sei o que seria se não houvesse entre o céu e a amplidão esse artifício criado para me guardar. É que não tenho um lugar nesse mundo, já disse. Sou de passagem, todos os dias do ano. Eu invento o novo e acabo atravessando cada dia que tropeço. Por muito tempo, sequer conseguia estar nas alturas. Onde segurar? Imaginava, com uma certeza mais que justa, que seria irremediavelmente lançada ou levada pelo vento. Nem sabia de Deus. Mudou. Ele sabe de mim. Fico próximo do precipício e me misturo à paisagem. Estou conectada. Fios de afetos de todas as cores, espessuras e tamanhos me vinculam e me cobrem. Encontro-me nos tantos de amores que me visitam e ficam. São eles que ligam a terra e nunca, ou quase nunca soltam o fio da pipa que ganha os céus a cada vento. Pequenos novelos de delicadezas, cuidados, encantamentos e enlaçamentos. Ontem mesmo, ao beijar um amor partido me deixei ir. Dói saber que vai e fica. Acabei de me distrair no enlevo do sabor quente desse beijo. “Eu faço os versos e nem rasgo”. Para que? Pois como eu vinha dizendo, gosto mesmo é da festa do ano novo. Corro, corro e fico hipnotizada com os fogos de artifícios e as lágrimas caem embaladas por tanta beleza. Eu sou grata, sempre fui. Esses fios me nutrem e me afagam inclusive os que se foram. Em cada dia desse ano eu me vi em lugares que guardam um mesmo nome: amor. Isso mesmo, amor, sem nenhum temor em ser piegas. Sem distinção de quantidade, tamanho e volume nomeio alguns deles: Isadora, Neide, Osmar, Tiago, Alex, Davi, Lucas, Bruna, Ceiça, Lucíola, Pedro, Márlia, Mariana, Cristina, Crisvany, D. Cosminha, Léo, Lídia, Camila, Gigio, Thiago, Márcia, Ana(s), Pryscilla, Fayga, Cláudia, Lana, Carol (s),Germana, Tainá, Joyce, Bety, Fabiana, Paulo, André...
Um brinde à vida, nova apenas quando sentimentos em doses altas fazem vicejar, todos os dias, o gosto de reinventá-la. Um brinde ao mundo que vejo aqui de cima e me acolhe, mesmo que o medo permaneça. Agora, o relógio marca 1.15 da madrugada do dia 29 de dezembro. Estou só e povoada. Lá fora, sem nenhuma rajada de fogos vejo um sinal: eu fiz essa passagem. É novo.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Acende a luz, meu bem!


Era tarde
Meus dedos sequer sabiam tocar as mesmas teclas, as mesmas cordas
Estavam mudos
Não há música a embalar o desassossego de mim sem você
E meus ouvidos perderam o tato do amor que se ausentou
Preservado de nós dois

Decretamos a noite
Meus olhos arriscam em te ver mesmo no escuro
Eles nos escutam
Uma canção lança o farol sobre a nossa extensiva paisagem amorosa
E meu olhar te abraça em cada corpo presente
Fugitivo de nós dois

Alteramos os dias
Minha-tua natureza frágil não tem como escapar do medo
Ele nos revela
Uma melodia romântica é capaz de nos deixar no chão
Tuas mãos tão geladas e aflitas quanto as minhas
Teimosamente, disfarçadas de nós dois

Trégua:
Para onde fomos que não nos levamos?
Eu uso a poesia para contrariar o tempo!
E você meu bem, por onde o deixou escorrer?
Eu uso as palavras para espantar o eco da tua presença!
“Ainda é cedo, amor”!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

responda: você acredita em fadas?


Hoje, desci a Serra
Uma paisagem verdinha, verdinha era salpicada por ipês amarelo-sol
Entremeando-se à beleza da mata e do mistério
Um aqui, outro acolá mais cheio de folhas, inundava meu olhar a cada curva
Feito aquarela que se derrama
Encontrei o verde em festa e fiquei sem jeito com aquela graça

Não sou fadinha dos desejos, como diz Bruna
(uma menina de sete anos que diz ser preciso muitas fadinhas para vencer uma única fada malvada)
Poderia ter visto disfarçado em verde o amarelo dos ipês
Durante todos os outros meses do ano

Uma fada deve pressentir por onde cada cor se esconde e se revela

Um dia de tempo recente, saltei logo, logo que vi amarelo sob qualquer possibilidade de nos dois
Não sei qual seria o manto a cobrir um dueto amoroso
Confesso, faltou qualquer cor que me desse alguma explicação
Apenas duas coisas eu entendi, descendo, descendo:

O tempo muda a cor do desejo
Mesmo que reserve o verde sob palavras de paisagens áridas
Feito incerteza que se derrama

Encontrei você em cada ponto da serra
Tangenciando a curva do meu olhar em tua direção
Mesmo que o segredo continue imerso

Eu vou plantar um Ipê amarelo bem no pátio da minha vastidão!
Você sobe a serra comigo?

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Escritura do desejo


Escrevo
Saciada de abundância
Desnutrida por excesso
Escrevo-te
Desejada de ti
Plantada aos teus pés
Escreva-me
Embriagado de mim
Tatuada em cada ponto do teu corpo.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

As dobras da glória

flor: estrela d'alva de belém

Fora de mim:
(Luzes de todas as cores pontilham a cidade e enunciam o natal. Um fervilhão de gente povoa shoppings, aeroportos, bares, danceterias, avenidas e points; de todos os gostos e estilos. Apartamentos e casas recebem novas pinturas, os salões de beleza aglomeram-se, é frenética a busca por roupas e acessórios a serem exibidos nas ceias natalinas. Presentes são comprados para trocas em amigos-secretos sem distinção de gosto e afinidade. É preciso correr, é preciso passar, é preciso buzinar, xingar o outro que não se locomove rapidamente no fluxo abundante de carros. A fraternidade ganha cores nas prateleiras. Papai Noel de tudo que é tipo, estatura e fardamento é visitado em cada shopping da Cidade. Um deles chegou de helicóptero e deu autógrafos; não perdendo para nenhum pop star. Filas de crianças aglomeram-se para apenas apertar a mão, sentar um pouco no colo e concretizarem, finalmente, o pedido de natal. Muito prático, porque os pais e mães, já no shopping providenciam os sonhos de natal de seus filhos. Nos semáforos, famílias, com crianças de todas as idades amontoam-se e esperam a caridade dos passantes. Os vidros fumes e a velocidade dos veículos, evidenciam a pressa; a solidariedade não tem como descer nas ruas. De vez em quando, alguém decide fazer sua caridade anual e uns presentes comprados em série, são doados, tão rapidamente como o tempo entre o vermelho e o verde. Uma indiferença desenha o invólucro entre os mundos que passeiam dentro dos carros e os sonhos adiados do lado de fora. Um abismo, cujo limite é o deslocamento e a barreira é medo. Eu não encontro lugar.)

Dentro de mim:
Tomo-me pela mão e percebo que o tempo é de natalidade. Algo morre, para que outras coisas possam dar passagem. O mundo fica tão nítido, tão nítido que os olhos quase não suportam. Por que muitos passam e não vêem? Dores, fomes, misérias e solidões estampam-se em cada esquina, praça, pedágio pedindo uma dose pequena de humanidade. Eu entendo tanto o “Ensaio sobre a cegueira”. Entendo por um excesso cotidiano de visão que refina o meu olhar espalhado por frestas do corpo. Olhos fincados em cada ponto de sensação. Por isso, nenhuma venda conseguiria esconder o que pressinto no mínimo ruído de indiferença e esquecimento. Um fio invisível me interliga a cada passante desconhecido, um fio que vibra e produz uma sinfonia de sensações difusas e desafinadas. O que dizer, que boa nova enunciar? Uma estrela sinaliza no meu céu – nasce a eterna criança, mesmo que os olhos doam e ela seja tomada por súbitas ondas de desvanecimento. Essa criança, como diz Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) “Dá-me uma mão a mim e a tudo que existe”. Ensina-me um jeito simples de fazer esperança com o coração na ponta dos dedos. Quando tem sono, já cansada ela pede um lugar quente para dormir e eu entôo a sua preferida canção de ninar: “dorme minha pequeninha, dorme que a noite já vem, tua mãe (pai) tá muito sozinha de tanto amor que ela tem”. Eu velo seu sono, banhada de ternura. Antevejo sua vontade de fazer nascer outros mundos sacudindo os sonhos, bem acordada. E como já disse, tomo suas mãos e ela me abraça os dedos. Adormecemos em um só corpo, enlaçadas como apenas convém a uma criança e uma poeta. Um lugar nos abriga. O milagre amanhecerá todos os dias. Feito força em comunhão. É natal.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Devir


Em cada mínimo lugar da palma da minha mão há um traço da tua imanência lacrada com nome de destino. Sem imaginar meu silêncio povoado de palavras, meu corpo protegido por beijos de passagem, você fez a loucura de me tomar às mãos e desenhá-las com a ponta dos teus dedos. Desvaneci reservada, como é típico das rainhas e vi pontilhar no céu um clarão de fogos de artifício. Estrelinhas de luzes brilhantes e cheias de faíscas, sem as minhas costumeiras explosões. Você vinha de novo e eu deixava entrar.
.
(Tão mais fácil correr, mesmo inerte, se cada uma das mãos ficasse esquecida e teu corpo buscasse através do meu apenas aplacar a fome e o frio! Você veio, pelo contrário, com o riso solto e os olhos pregados nos meus e me disse do mais lindo que permanece em você. Falou do seu cavalo alado, que tinha um nome pássaro e de como foi difícil se apartar dele. Contou-me, cheio de orgulho, que foi proprietário de um mini-posto, com elevador para lavagem dos carros em miniaturas e ainda de um autorama do tamanho da sala. Derramou palavras sobre o encanto de brincar, o tempo que se esvai no frenesi do dia a dia e os tantos álbuns incompletos de figurinhas. Rimos das nossas buscas por figurinhas difíceis, por tentarmos no bafo alcançar finalmente a que nos faltava. Mencionei minha coleção de caixa de fósforos, a cidade de bonecas e a certeza de voar entre as paredes do corredor da casa. E a minha criança e a tua se deram tão bem!)


Tem gente que não gosta nada quando digo: pressinto o que há de vir. Não demanda ser vidente não. Basta seguir os sinais de intensidade que o corpo guarda e vibra. Aprendi muito cedo a ler esses inusitados desígnios. Se pelo menos, tuas mãos tivessem soltado as minhas antes e depois. Se houvesse pressa em buscar algo fora de nossas mãos. Tu foste ficando até se fazer zero a contagem regressiva para o novo. Chegastes antes do dia, nesse ano que permanece e parte. Com tuas mãos quentes, firmes como de agricultores que cultivam o que comem; tu foste unindo cada ponto solto e ermo de nós dois. Desenhando dedo a dedo um bordado entre alma e desejo.

Ninguém leu o nosso destino. Nem os búzios, nem as cartas, nem era prevista tua vinda em qualquer trânsito astrológico. Foram teus dedos nos meus, brincando no céu de dezembro, que te conduziram até a mim.

Quando você chegar, tome minhas mãos e eu saberei. Olharei para o céu e no meu corredor não mais tão estreito, estará voando livre o teu cavalo alado. Direi: sinto-me tão bem ao teu lado. Você responderá: eu também. Apenas isso. Esse é um ano novo!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Perda Preciosa


Encontrei uma pérola no caminho.
Tímida e inundada de brilho.
Ela dançava fora de sua concha
Eu dentro da minha

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

oscilação de temperatura


Faz silêncio.
Não quero dar explicações. Faltam-me palavras para certas coisas. Quem passa lá fora não consegue ver. Continua chovendo dentro de casa. O náufrago sequer envia mensagens na garrafa. Não há mais nada a ser salvo. O desamor rompeu a barragem. Eu mesma, nesse momento, me protejo como posso com os pés acima do chão. Nunca aprendi a nadar em águas revoltas. Agora, chovo. Ver por dentro provoca precipitações. Calma. Eu nasci sabendo voar. Não tenho pressa. O descobridor dos sete mares passará por mim e me navegará. Meu corpo fundará uma nova terra. Meus olhos dirão. Seus olhos me aquecerão. Ele sabe ler sinais. Haverá mudança de tempo. È verão. Aqui dentro, quarenta graus. Descansarás tuas pernas entre as minhas.
Faz silêncio.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Ex-voto?


(primeira versão)

Tomei os contornos do meu coração e o afixei num papel roto
Guardado em cofre, do lado da Nossa Senhora Desatadora de Nós
Havia de existir milagre!
Se havia!
Caso o deixasse entre braços, pernas, dedos, costas e rostos de graças alcançadas
Ele bem que poderia ter salvação.

O silêncio é o sal da redenção

Posicionei-o na prateleira
Não tão destacado
Não me tomem como desalmada,
Isso não sou!
Tive toda a delicadeza e zelo
Embora bem cansada
Não dei as costas e nem fingi desconhecê-lo

Há tantos outros que aguardam obstinados em prateleiras de fé

Coloquei-o entre uma mão fechada, de boa aparência
e uma boca que deveria estar ali por ter calado.
Dos males o menor,
Amar em demasia povoa e funda poemas.
É preciso cuidado com o pedido alcançado
E se o amor se esvai de vez?

O tempo tem me assustado

Nem precisa preocupação, piedade muito menos
Pois ele sabe que os calendários apenas imitam o tempo
E o meu (nosso) “coração é cristalino, mais duro que diamante”
Resiste sereno e confiante.
Resta apenas ultrapssar o abismo
Eu sou eu, você é você: acreditamos em milagre?

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Imprevisão de tempo


Impossível ver o Redentor entre as névoas

Se o amor nunca acaba, muito menos eu.
Que de turva e abstrata não tenho nada,
Sou escovada feito aço
E dobrável na medida em que vale o tempo de trégua

O avião sobrevoa o Rio entrecortando nuvens carregadas

O amor essa linguagem de sinais sem códigos:
Em silêncio você me falava
Feito farol alumiando a terra.
E eu respondia muda e incendiada

Chove na Lapa e meu corpo não espera

Danço gafieira inebriada entre tantas mãos
Um desconhecido me toma pela cintura
Pernas se movem uma na outra em ritmo de festa
E eu vendo (ainda) tua beleza em cada ponto branco da tela

O bondinho do Pão-de-açucar parou na Urca!

Não há previsão de mudança de tempo
Apenas a permanência de um desencontro retomado
Entre as névoas
Você me vendo em fortaleza e eu te trazendo num veloz barco à vela





segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Rio, eu gosto de você!

Foto: Glória


“Minha alma canta” e o meu corpo sabe quando vai chegando ao Rio. Os momentos que antecedem esse reencontro são semelhantes à tensão do desejo do abraço de um amante amoroso que resiste ao tempo e a distância. “Um lugar para fazer feliz a quem se ama”. O Rio sabe de mim e eu me entrego a essa intimidade. Quem for só um pouquinho observador, vai reparar no mais rápido lance de visão: meus olhos tornam-se espelhos, meu corpo acende uma curiosa vontade de misturar-se à paisagem e de se entregar às correntezas de um “rio que (nunca) passa em minha vida”. Da janela da “São Francisco Xavier” podia, todos os dias, ver o “Redentor”! Esse Rio- imagem de uma beleza que escorrega, fricciona o corpo e ativa “a menina que vem e que passa”, despudoradamente.

Eu imagino, seria um perigo se eu morasse nessa cidade! Fazia sociologia nada, acho que seria dona de boteco, artista plástica ou mesmo dançarina de gafieira. Eita, bem melhor, nem teria que ser tão cuidadosa com as palavras, elas poderiam ritmar os sambas enredos das escolas nos dias de carnaval. Podia ainda ser “a mais bonita das cabrochas de uma ala”. Pra que melhor?

“Rio, você foi feito pra’ mim”, e não é conversa mole não. O radar do meu corpo sabe reconhecer os que se dissolvem na paisagem, os que beijam demorado, como quem tem sede. Assim me movo por seus aterros, baía e túneis. Um deslizamento mistura as imagens volumosas, das curvas tangenciando morros e montes com gestos e movimentos que me são tão familiares.Da última vez, ia distraída pela calçadão de Ipanema e, de repente, a vista turvou, lá vinha o Chico Buarque. “Olhos nos olhos” e eu sem saber o que fazia, ai, eu só gemi – ooooooooh! Chico. Ele riu, de mansinho, apressando o passo. Ali, me solto mesmo; fico faceira e nem tenho vergonha disso. “O apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos e eu me lembro de você”; a Vila Isabel e infância de minha mãe ao som do violão de um Noel Rosa magro e tímido nas calçadas. O ressoar dos tamborins do morro da Mangueira e os gritos de gol do Maracanã.

Perdão, essa semana os escritos ficarão jogados ao vento, literalmente. Durante o dia, nem pensar, o Congresso Mundial será rico e intenso; as noites na Lapa, os botecos em cada esquina, o vento da Barra me impedirão. Perdão mesmo vou saindo, agora, tô indo para o Rio de Janeiro, “morrendo de saudades”.

sábado, 22 de novembro de 2008

De olhos bem abertos


A aquarela subiu a linha da serra. Tudo verde, tão verde que o mato parecia derramar-se sobre o asfalto e perfurar de mansinho o amor que foi ficando cinza. Eu consenti? Uma cor pode encobrir às outras como anteparo de vida? Imagino que a tristeza é monocromática, assim como a desesperança. Cada curva de subida anunciava a boa nova: vermelhos exibidos feito batom carmim, azuis de anil, de céu em ventania, amarelos feito favos de mel. Eu era cega “ou me fazia”? Tudo aquilo sempre esteve ali e agora que eu via?

Os galos tinham penas brilhantes, a folha da zabumba lambia o caminho, a horta do Zé Maria exibia uma couve grandona que nem vitória-régia, o bebum dormia desde o outro dia, o açude do M. Dias tinha água até a barragem, a grama já recobria a terra do quintal e os abacates pareciam pérolas verdes enfeitando a pequena árvore. Onde estive que nada me invadia?

Dona Cosminha, a senhorinha de noventa anos, minha amiga da Linha bem que já havia me prevenido - felicidade é sentir-se grata todos os dias. E eu estava bem mais que isso. Consegui receber as dádivas e tomá-las como alimento e festa. Vontade de pegar a manga entre as mãos rasgá-la e chupar até o amarelo deslizar. De preferência sentada na pedra marrom-esverdeada que permite debaixo da árvore vislumbrar serra e sertão. Assim fiz. E lá fiquei por um tempo. Depois, experimentei olhar outra paisagem. Agora, de olhos fechados vejo todas as cores. Será que é isso que chamam de alegria?

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

travessia do fantasma (para todos criadores e criadoras das artes de viver)


Tomei-me pelas mãos com o coração em disparada
Assim que presenciei a morte retirar-se
Eu, irremediavelmente viva e ela, já sem olhos para ver
Cada uma seguindo a sina da partida
Não mais
Ela pensando que me alimentava
E eu imaginando que a conduzia.
Findou-se o infinitivo dos verbos,
Morrer de vida
Viver de morte
coisa apartada da outra
uma mãe, a outra cria
Some do alcance da vista
o fastasma assustado por sua sombra
Em plena escuridão do dia

é outra hora
um outro tempo
eros é também silêncio, solidão e vácuo
entrelaçados em sintonia
um só corpo, uma só carne
o imperitivo fértil se prenuncia
Criar, criar, criar
não é essa a única garantia?
os anjos no ceú e no inferno proclamam a nossa glória!



terça-feira, 18 de novembro de 2008

Que não precise arder tanto


Ingredientes bem dosados fundam as receitas.
Eu leio e desobedeço
Vou misturando o que a língua aprova
E aquilo que me permite gemer
Na ponta do dedo.

Um risoto com um pouco de cada coisa.
O que é possível juntar?
Corto a cebola, espremo o alho e fico imaginando se uso ou não a pimenta.
Do reino, raiz forte, de cheiro, ou chili?
Que não precise arder tanto, com um pouco de cardamomo!

Escolho o negror do funghi, amarelado pelo curry, banhado pelo vermelho feito brasa do chili
Ai, ai!
Tomo nas mãos o arroz arbóreo
De grãos firmes e delineados um, a um, com perfeição
Deixo a água ferver banhada de azeite e sal.
E me entrego à delicadeza do ato de criar um gosto tão meu

Saboreio um gole de vinho rosé
E reparo
A voz quente de Nancy Sinatra traz condimentos de lembranças
Por que não?
Tomo a colher e levo à boca
Um tantinho do que ainda ferve.
E digo: hummmmmmmm! É bom.

Bang bang, he shot me down
Bang bang, I hit thre ground
Bang bang, that awfuk sound
Ban bang, my baby shot me down


Sirvo-me do banquete
Uma porção atrás da outra é festa na minha boca
Cheguei até a pensar: acho que perdi tempo nesse negócio de sociologia
Só porque fui a cozinheira, devo ser modesta?

“He didn't take the time to lie.”

sábado, 15 de novembro de 2008

sem palavras


O medo tem um sentido bem ali
Onde as palavras escorregam
Nem me adianta gaguejar, criar reticências, murmurar monossílabos vagos de significados
Correr, muito menos.
Fico tão sozinha são elas!
Guardei os nós na garganta
Aquele buraco que cresce no meio da barriga
As lágrimas que não tinham para onde ir
E todos retornaram em silêncio.
Você ouve esse abismo?
As palavras têm um sentido bem ali
Onde os medos escorregam.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

sem título, sem ilustração


Por onde perdemos os pedaços que traduziam lembranças de dois? São pequenas quinquilharias, como desenhos, pedrinhas, fotografias e coisas desnecessárias que seguram um tempo em dueto e o desfazem. Elas se foram. O amor meu levanta-me. Será? Carrego uma sensação de que vou embora esquecendo algo. Olho em volta, nos cantos, nos lábios, atrás e nem sequer tenho pistas do que possa ter perdido. Esquecimento?Furto? Bincadeira de esconde-esconde? Sendo assim, nem suspeito (a) eu tenho. Como me lamentar? Tem alguém ai que possa assumir alguma culpa, tem? Acho que falei baixo. Uma hora vou ter que ouvir: distrações da eterna menina que dorme detrás das portas!

O amor pode ser , logo depois, um rascunho esdrúxulo e solitário.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Contigo Aprendi




Escrever uma história ouvindo todas as idades que tenho,
Contar história para todas as idades que temos.


Eu tinha apenas três anos quando ele nasceu. De tão branquelo foi apelidado de arroz doce. É bem verdade, eu queria uma irmã. Pensando bem, eu queria uma amiga para brincar de boneca, jogar pedras, pular macaca e chorar comigo assistindo a sessão dominical de Mercelino pão e vinho. Pensei então que ele poderia vir a ser um boneco de mais verdade. Poderia substituir o seboso, o único homem no harém das bonecas. Seboso, obviamente esse nome fora dado pela minha mãe, pelo olhar do outro. Ele era o mais velho da cidade dos bonecos e foi ficando meio desbotado, com uns sujinhos grudados nas pontas dos dedos e uma mancha, quase que uma raspa na perna esquerda. Não sei muito bem porque, mas a nudez era a condição corporal de seboso.
Foi quando nasceu o Paulo. A diferença é que meu irmão chorava, calava, ria estranhamente e não me respondia nada, nunca. Já o Seboso, principalmente quando ia dormir e se aproximava aquela hora da aparição dos fantasmas, dizia de mim e do mundo. Eu deitava de um lado, para reparar nas almas que vinham na mira de meu olho fechado e, seboso, ficava olhando o meu outro lado, o escuro, o abismo. Um certo dia, uma voz adentrou o silencioso diálogo entre mim e seboso. Meu irmão falava também. Era um final de tarde. Na radiadora, tocava Contigo Aprendi na voz de Altemar Dutra. Peguei Paulo pela mão e atravessei as cadeiras que pontilhavam o entardecer na calçada. Quando a noite chegou, como num ritual sagrado, naquele dia, amarrei em nossos punhos um telefone sem fio. Uma caixa de fósforos, um cordão que aproveitei das compras chegadas da mercearia, um fio de comunicação. Atrás de mim, não havia mais seboso. Apenas a infinita certeza do escuro, do sem fim e da tênue linha que parece unir afetos, dose possível de remédio para a alma. Durante toda vida um fio invisível nos entrelaça, nos comove. Contigo aprendi que existe luz nas noites mais escuras. Bom dia, Paulo.

Para Paulo Diógenes


domingo, 9 de novembro de 2008

fértil solidão




Uma solidão
Deitou-se ao meu lado
Tomei suas mãos
Entrelacei pernas com pernas
Olhos nos olhos
E não houve jeito:
Ficamos!

para aquele que espera o trem


Um sonho passou por mim
E deixou seu rastro.
Nem aguardei os pedaços de lembrança
Levantei inundada e tonta
Tomei a escova
Agarrei sem a mínima idéia de força
E a pasta pingou azul
Como um sinal
Ali no meu braço.
Vi o esboço de nós dois
Que resiste aos ventos
Percorri o desenho de sua boca
Molhada e nítida.
E um chamado que diz: você é única, sabia?
Será mesmo?
Melhor duvidar.
Fechei os olhos
E um sopro quente
Te mostrou em mim
Ali, inerte e movediço.
Com um riso escancarado para o tempo .

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Glória:
Estive no blog, li seus poemas e vi você, linha ao vento. Pensei depois de ir, ler e ver: se há mulher e a segunda natureza que ela instaura, há, sim (apesar dos ditames em contrário) uma literatura feminina, assim como há uma literatura macha. Ambas, em seus arquétipos de homem e mulher. Isso em nada (pelo contrário) as diminui. Ambas transcendem gêneros e não são feitas necessariamente por quem tem o sexo masculino ou feminino. Pensando assim, Manoel de Barros me parece tão menina e Hilda Hirst, tão fálica. Mas em você - pelo menos no que li até agora e foi tão pouco - genitália e escrita coincidem, como, por vezes, em Clarice e Lia Luft.Pòs-leitura , saio tocado pela feminilidade. Repito, aquela feminilidade arquetípica ou consensual ou trans-histórica: mulher, não apenas enquanto pessoa, mas um lugar.Escrevo isso pensando no vento que, segundo um dos poemas, lhe levanta a saia, lambe não se sabe onde e bate a porta. Escrevo isso pensando em quem, parafraseando Bandeira, diz ser "a mulher que quero e a cama escolherei". Escrevo isso pensando, pois, na mulher como um eldorado, um onde que pra onde vai leva consigo um para-além de si mesmo; um em-si. Poesia - diz Haroldo de Campos - é o afazer de afasia, ou seja, é um afazer de palavras quando não se tem palavras. E eu acrescentaria: poesia é o que nos põe em estado de poesia, em estado de afasia. Você, com alguns de seus textos, me pôs assim, tentando decifrar essa matriz feminina que aconchega um mundo à parte que lhe entra pela fresta da carne.
Um abraço!Ricardo Guilherme P.S Depois de reler este email, me perguntei: que sexo tem essa minha escrita ?Rsrsrsrs

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

auto-retrato


Eu não tenho perfil. Desde bem pequena me pergunto onde fiquei, onde nasci, onde houve registro de alguma glória.Sei que desde sempre tomo na mão pequenas coisas como cobras de duas cabeças, caixas de fósforos que funcionam como telefones perfurados com barbantes e miniaturas de todos os tipos.Fui talhada para subir em árvores e quase nunca saber como descer.Fui fadada a ler a histórias de santos e santas que assim se tornaram por resistirem. E nunca gostei de freiras. Rezava, rezava muito para os heróis das estórias conseguirem vencer os monstros, desvendarem os enigmas e, finalmente, serem premiados com o mais singelo dos amores. Gosto de gente que alcança lugares ermos, topos de montanhas, corações de florestas, fundos de cacimbas. E voltam para contar e atiçar o desejo de ir.Por achar que flutuava e voava interligando chão e teto, eu me perdia nos espaços do meu quarto. Quase sempre me desligava e via o mundo rodar. E se eu tivesse adentrado o “túnel do tempo”?Fazia das músicas trilhas sonoras de aventuras vãs.Descobri muito cedo onde fica o prazer e ele se espalhou por lugares que ainda nem conhecia. Eu nem me reservei e muito menos precisei ir ao Fantástico.Uma palavra em falso, um dedo em riste, a dor de um outro estampada na minha cara, um desalento, faziam rolar lágrimas com prenuncio de inundação.Sou fértil, tão, tão que quando o homem, segundo a minha avó, pegava no punho da rede já havia risco de procriação. Filhos de todos os jeitos. Amamentar segurando os dedinhos, agradecida por ser fonte que nutre um e outro. Tenho inveja das cumade na beira dos açudes lavando roupas e quarando a vida. Quando crescer, quero ser uma mulher que apenas pressente, sem as desmesuras daquilo que chamam sentimentos. Roupas entre as pernas, sabão que lava na pedra aquilo que demanda ir, o sol e varal. Melhor assim. O cheiro do feijão adornando a espera e o homem de peito ao vento enroscado no silêncio.Lá fora, o cheiro dos guaxinins, as cantigas de grilo e uma ausência do tempo. Um lugar ermo de palavras e eu plantada, bem no meio.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008


Acabou de entrar pela minha janela
Um vento cheio de sedução
Levantou minha saia
Desgrenhou meus cabelos
Desceu pelas costas
Lambeu num sei onde


E bateu a porta!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O vôo


(A poltrona de número vinte e cinco
Era exatamente aquela
Da saída de emergência
E eu a guardiã dessa passagem)

Logo eu que temo cotidianamente a minha própria insegurança.
E nem pressa tenho mais.
Como ser aquela
Que na hora H
Puxa a manivela?

Logo eu que troco as saídas
Pelas portas de entrada
Os banheiros femininos por masculinos
Os amores continentes
Por amores lançados ao vento?

Logo eu que na eminência de uma tragédia
Serei a primeira a duvidar da possibilidade
De abertura.
E produzirei travas e trincos
Adornados pelo medo da espera?

Logo eu que quando pressinto o perigo
Imagino o morrer
Uma aventura da passagem
Para além das portas
E dos avisos luminosos de apertar cintos?

Logo eu que navego
Em pleno ar
E decidi transpor os abismos invisíveis
Remover os anteparos da visão
Romper os lacres dos tesouros adiados
Logo eu?

Como posso dar segurança?

domingo, 26 de outubro de 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008



Encontros Proscritos Três ( Escritos nas Alturas Três)

Tudo inchou, inflou. Não consigo digerir. São 4 horas da manhã. Falta sono, fica apenas um cansaço desassossegado. Faz calor no frio, não encontro lugar na cama. Amo um amor que parece não ter para onde ir. Talvez tenha se extinguido há muito tempo, talvez nem tenha existido. Olho e sei que tudo nele é sinal de uma história de amor; os olhos pequenos e repuxados, os lábios vermelhos, o nariz empinado e o meu encanto pregado na cara dele. “Posso escrever as linhas mais tristes esta noite”. Os cachorros latem ao longe e mesmo ao meu lado, ele não está comigo. Nunca vi tantas estrelas cintilando no céu da Linha e nós dois imersos na escuridão. Quando foi embora? Quando me ausentei? Deixamos o desencontro ocupar a sala de visitas. Eu ainda me lembro de nós dois enlaçados e nítidos. Preciso de um guia de cego. Nem consigo andar de bicicleta! , perdi o equilíbrio. Talvez, chore muito. Minha mãe dizia que chorar era fácil para mim. Mariposas tantas, tantas bem pequenas e doidas por luz. Descobriram agora que podem voar. A chuva irrigou essa nascença. Eu quero fazer do meu choro surgir seres voantes enunciando a boa nova. Ele dorme ao meu lado. De mãos em concha e eu aqui tão a ermo. Quando amanhecer, não terei dormido. Como disse no início, tudo na minha barriga parece ter parado no exato momento em que comi e vi uma tristeza se fazer enchente. Cadê um colo? Um consolo? Uma canção de ninar? Tem alguém ai para me guardar enquanto dói?
Março de 2007

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Desalinhos e desmesuras (parte dois)

I just call to say I love me

Pela fresta vejo o tempo escorrido
corpo adentro.
Nem chuva, nem sol, muito menos alerta de fogo,
Pareciam tocar sua superfície silenciosa
e sonsa.
Ela se fingia de morta para melhor viver
Dizia minha avó da mulher da frente
Cada vez que o mundo pedia dela um grito, um riso, um gozo.
Ficava quieta e no canto da boca desenhava um gracejo de cumplicidade consigo mesma. Apenas ela alcançava. Eu que vivia para fora, vida vai, vida vem, ficava a imaginar para onde iam seus transbordamentos.
Passei a vida acordada e agora, percebo o quanto aquietei um tempo sem ao menos saber. Dormi para ver por dentro e fiquei aconchegada na passividade cúmplice. Uma incubadora de desejos, adiados e imprecisos.
Em que lugar me guardei enquanto dormia? Nem acordar eu sei. Remexo os sonhos e me vejo deitada na rede com o desconhecido. Um homem carregando a lenha passa e rouba meu olhar, um negro toca a ponta dos meus dedos e estremeço.
Subo e desço as ladeiras da serra. As papoulas sempre foram tão vermelhas? Montanhas de formas diversas enchem o vale de volúpia. Canindé tem um santo e eu aqui vendo malícia por todos os lados. Que cara tenho eu? Tomo a digital e registro imagens tantas de mim. No canto da boca o riso da vizinha. Nítida uma cara de mulher, desalinhada e vermelha, de vergonha é que não é.







Desalinhos e desmesuras (parte dois)

I just call to say I love me

Pela fresta vejo o tempo escorrido
corpo adentro.
Nem chuva, nem sol, muito menos alerta de fogo,
Pareciam tocar sua superfície silenciosa
e sonsa.
Ela se fingia de morta para melhor viver
Dizia minha avó da mulher da frente
Cada vez que o mundo pedia dela um grito, um riso, um gozo.
Ficava quieta e no canto da boca desenhava um gracejo de cumplicidade consigo mesma. Apenas ela alcançava. Eu que vivia para fora, vida vai, vida vem, ficava a imaginar para onde iam seus transbordamentos.
Passei a vida acordada e agora, percebo o quanto aquietei um tempo sem ao menos saber. Dormi para ver por dentro e fiquei aconchegada na passividade cúmplice. Uma incubadora de desejos, adiados e imprecisos.
Em que lugar me guardei enquanto dormia? Nem acordar eu sei. Remexo os sonhos e me vejo deitada na rede com o desconhecido. Um homem carregando a lenha passa e rouba meu olhar, um negro toca a ponta dos meus dedos e estremeço.
Subo e desço as ladeiras da serra. As papoulas sempre foram tão vermelhas? Montanhas de formas diversas enchem o vale de volúpia. Canindé tem um santo e eu aqui vendo malícia por todos os lados. Que cara tenho eu? Tomo a digital e registro imagens tantas de mim. No canto da boca o riso da vizinha. Nítida uma cara de mulher, desalinhada e vermelha, de vergonha é que não é.

sábado, 18 de outubro de 2008


A glória e a linha (escrito nas alturas um)

Tem alguém ai para um dueto
A quatro mãos
Capaz de vibrar canção no vendaval
Da Linha da Serra?

Quero colher manjericão
Acompanhar a grama se esparramando
No quintal
Olhar Caridade ao longe
Jardim do outro lado
Entrar no quarto
E triturar densidades.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Os quatro elementos ou porque é preciso ir

Era um poço tão profundo que tocava a pele do mundo. Ali, onde tudo era aparentemente plano, superfície intacta, havia furos, rugosidades, entradas e saídas. Um profundo feito de horizontalidades e abismos. Assim como Deus costuma tecer seus mistérios.
Era um poço corrente, com cordilheiras de musgos e vitórias-régias, a entrever o rasgo da luz que saudava a eterna brincadeira de entrar e sair, de mergulhar e boiar, de ser navio, submarino e albatroz."Fica ai que ele te leva correnteza abaixo e te salva", diziam as mulheres aos seus filhos mergulhadores. Era então, que num gesto quase sagrado, eles ouviam e voltavam para salvá-las da terra. Eles sabiam que as mães deveriam ser postas em perigo para terem coragem de ir.Entretanto, o poço não era somente um lugar cujos chamados eram motivos de preocupação para mães e avós. Virar planta pode significar uma forma de não se deixar levar, de desistir de ouvir o chamado dos ventos e das águas andantes. Lá havia também o fogo mais abrasante capaz de aquecer léguas de distância. Água e fogo sem nenhuma utilidade. Assim como o vento que dava movimento a tudo e a terra que o contornava quieta e macia. Nada de preocupação com higiene, limpeza ou fogueira de restos. O poço fazia correr os desejos mais improváveis, impuros e com uma faísca tornava toda a água um poderoso combustível. São belas as coisas sujas, despropositais e perigosas.

Até os viajantes sabiam que o lugar para se experimentar o único, o mistério do sentimento que parecia deixar bravo até mesmo Deus, ficava bem ali, no poço dos quatro elementos. Como não podia ser diferente, os velhos da aldeia contavam diversas lendas sobre ele.

Uma dessas histórias fala sobre um anjo-feiticeiro que havia ganhado asas depois de se apaixonar por uma feiticeira-anjo de olhos grandes e pele quente, cor de amêndoa. A devoção do anjo à feiticeira, e da feiticeira ao anjo, não somente tornou-o humano e com asas, mas deixou também, o humano Deus, conciliado com a sua criação. E no oitavo dia Eros desfez poço e banhou o mundo.Em regozijo, o Senhor tornou o amor dos dois água-terra-fogo e ar, e dispensou o escrevinhador das artes de Memória. Numa “bendição”, por um tempo, tornou atemporal e sagrado aquele amor. De tão bondoso, o Senhor decidiu, por repetidas vezes, soprar os ventos perto das asas do anjo-feirticeiro a fim de devolvê-lo ao seu caminho. Deixou as águas deslizarem para que ele pudesse escorrer. Usou o fogo para atiçar o desejo e lançá-lo em fresta à sua amada. Trouxe, por fim a terra, para que ele aportasse no seu lugar. Nada disso parece ter acordado o anjo-feiticeiro. Por não se sentir merecedor o anjo inventou um Deus bravo, castigador e um amor finito. É por isso, que ele, esse anjo, não consegue sumir, e se encontra perdido entre o seu mundo e outro estranho para ele, mundos fora dele.Ao encarar a promessa de uma nova terra, de um outro amor o anjo foi deixando-se cair; a sensação do vácuo em terras distantes o remetia, de forma insistente, a olhar de longe o seu amor perdido. Apesar de ainda ter asas e possuir corpo de homem-anjo, ele já quase não conserva seu coração-quatro elementos. De tanto querer negar, ir, recusar ficar e aportar o anjo foi perdendo aquilo que tinha de mais sagrado: o amor- cordilheira, o amor-ventania; o amor-combustão, a amor-chão. Ficou apenas um corpo-representação. Porém, há o outro lado da história. Dizem que a feiticeira-anjo percebeu a incessante vontade e generosidade de Deus em criar e re-criar o amor. Por ter esperado o anjo-feiticeiro criar asas, tornar-se homem, abrir mão do seu coração e, em seguida, tê-lo perdido, Deus trouxe para ela um homem que voa e fica. Um homem que ama e ama. Um homem que se sente com asas apenas por ser amado e poder estar ao lado dela. Um homem e uma mulher, ambos alados e enfeitiçados. O anjo-feiticeiro? Virou conto.

O mar leva e traz


O mar leva e traz (encontros proscritos dois)


Entrei. Vi um homem ferido sem que eu pudesse evitar. Como deixei que a velocidade, o desatino de quem anda ao sabor dos ventos e das marés pudesse fazer capotar o seu destino? Braço enfaixado, olhar curioso e a sensação de perplexidade por estar em um lugar cujo tempo parece ser livre. Um braço que me pôs diante de uma desatenção, de um cuidado desastrado com a alma que anima esse corpo. O que foi isso? - Perguntei- Pressenti que ele nunca mesmo iria conseguir explicar porque virou, porque ficou.

Vi sua grandeza de corpo mesmo que se expande talhado, como monumento. Jeito de fincar pernas e braços que tudo alcançam. Eu sei, ele ataca, muitas vezes devora. Instinto tubarão que antevê as presas que rodeiam e instigam. Repentinamente, baixando a guarda ele senta no chão, horas a fio.

Do outro lado da sala, em momentos de lusco-fusco, via e não via o homem que parecia surgir da minha escuridão. Mesmo quando percebia que seu olhar fugia do meu, sentia-me vista, atravessada de desejo. Cada gesto, cada movimento do meu corpo, parecia refletido na sombra do homem que espelhava à minha frente. De que onda de tempo ele veio ao meu encontro?

Foi assim que vi entrar na minha sala de mulher esperta um homem que não costuma pedir licença. Fui desavisada encontrá-lo. Pensei: homem avesso do esperado, mete menos medo. Cheguei até ele despretensiosamente e, como muitas vezes solto coisas de menina malcriada, aproveitei: não vim para ficar, vim para ver.

Diante do meu olhar, pressenti uma ternura boiando a ermo. Não há bússola capaz de prever a direção das coisas belas e profundas. Quando a sua mão me tocou percebi o prenuncio dos fenômenos que alteram a paisagem, tipo correnteza, redemoinho e precipitações.

É então que o braço começa a cicatrizar e cada ponto retirado enuncia: o meu homem prepara-se para ir. Meu escravo sem dono parte antes de aportar. Você que é de-lugar-nenhum vai e deixa livre o meu jeito escondido de ser mulher. Deixa-me. Esse é o legado do nosso encontro. De outro modo, sei que em você reside uma força que me coloca no lugar, que me nomeia – fêmea.

Obrigada por teres adentrando minha alma sem pedir licença. Que os deuses e deuses te acompanhem Mar Adentro, Terra Afora.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Tanto Faz






Eu bem aqui
Você longe, longe.
Um no topo da montanha
O outro em alto mar.
Você correndo lento
Eu retendo solta.
Um vendaval
Outro apartamento.
Um latido
Outro lamento.
Um vulcão
Outro tormento.

Tanto faz,
mesmo

Pontos invisíveis
Entrelaçam pernas e braços
Línguas e dedos
Gemidos e risos
No lugar inexistente
Da gente.
Eu deitada nos seus braços
Estórias narradas ao vento.
Você escorrendo em silêncio
Eu tateando teu tempo.
Você bem aqui,
Eu longe, longe

Tanto faz
O mesmo
Bem.

Adormecemos os dois
Amanheceremos

15 de outubro de 2008

terça-feira, 14 de outubro de 2008


Estação do dia


Queria-te
Como quem busca o sol
atravessei
nua.
Imaginei
Tonta de luz
O fim dos invernos.
Navegando tantas luas.
Eu sou do tipo
Que vai e que fica, indo.
Toda e nem toda.
Até que o balanço
Pare.
Sou uma mulher sentada
Ao sabor dos ventos.
Quando quero,
Finco os pés no chão.
Medo?
Por que não?
Do medo se começa
Para que ele se derreta.
O sol derrete o medo, sabia?
Desde menina sei.
Assim, como no centro.
Da minha cama apinhada de fantasmas.
Durmo e vou sonhar.
Fecho os olhos
E fico
E ficoficando.
É que tem gente que fica(só)indo.
O sol derrete o medo sabia?
Chá de cidreira também.
Avó cura insônia.
Assim tão bestamente tua
Lembro
A primavera.
Vi flor em tanto canto
Que nem conto cores e pétalas
Psiu! Está ficando tarde.
Sonata de Outono?
Nem sei, deixa passar,
Outra lua.
Ali, ainda tão tua,
E nem tanto.
Agora ainda mais nua.
Ainda penso,
Pode ter sido quebranto
Olho gordo.
Faltou simpatia?
Preciso ir,
Com licença,
O sol derrama.
Por favor,
Uma informação:
Qual a estação do dia?

sábado, 11 de outubro de 2008

Um dueto, ou uma carta de amor



Agora é quase meia-noite. Sob os meus pés, tenho as patas de Bilbo e uma vontade de carinho que nunca cessa. Vejo-te nos olhos dele. Nos olhos dele? Sei da imensidão que me circunda, o que temo transborda. Fico confortável quando avisto o limite de cada coisa, quando meço a palmo a distância de onde estou e o que me falta. No geral, antevejo e me apaziguo. Quando estivemos entrelaçados, desde o primeiro momento, não avistei o fim. Como um barquinho pequeno num mar infinito e eu navegante sem bússola.

Que menina esquisita! Quanto tempo faz que ela lança o olhar para não se sabe o que? Glória Maria, o que você faz ai, o que você está vendo? Desde bem pequena nunca entendi porque via sempre outras coisas que pareciam não compor a paisagem. Um dia perguntei: Como se faz para sair da gente e voltar? Foi quase sempre difícil me habitar sem trégua. Era banhada por uma desmesurada sensação de que cada coisa vista me falava, me convocava e eu tonta, gaguejava e me esquivava. Haveria delicadeza capaz de me sentir tomada pela mão em silêncio? Haveria?

Por isso sei meu amor como é preciso que os dedos deslizem pacientes por nossas superfícies tão protegidas, por nossos "quartos de angústia", por detrás das portas e dos pequenos recantos de estranheza e encantamento mútuo. A transparência que nos envolve é como um facho de luz de vaga-lume; existe apenas para quem também assume essa mesma condição. Já viu dois vaga-lumes no mesmo espaço escuro? A minha Glória é apenas ter experimentado e habitado o vácuo e reconhecer quando uma matéria viva o visita e resplandece.

Você fica na condição de quem sempre esteve lá, sabe de cada recanto meu, dos meus desvanecimentos, de onde falta a linguagem e de como ela vem em torrentes de tudo explicar, de tudo ocupar. Você sabe e eu não tenho mais onde me esconder. Sabe que a "menina dos talcos" permanece trêmula e lívida. Você sabe, eu deixo e me entrego! "És tú quem sempre esteve dentro de mim, sou eu quem estive acolá".

Ao dono deste gato, aqui comigo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008


Criolina e Buiú: encontros proscritos (um)

Retomo a cena inaugural: um vento desloca as vestes que supostamente recobrem os corpos. A câmera foca o vestido envelope da mulher aberto ao vento, adentra o carro e sem esboçar nenhum movimento capta a nudez recoberta do homem.

(Buiú, um delirante morador de rua, fez do corpo um guarda-roupa. Dobraduras de vestes de todos os tipos empilham-se. Não se sabe quantas calças, camisas e bugigangas tranca sobre si. Carrega tudo o que possui ao mesmo tempo e acredita, desse modo, protegê-las, conservá-las. Ninguém até hoje sabe dizer quem esconde o que, se as roupas cobrem o corpo ou se o próprio corpo envolve os pertences. Um dia me falou do seu cansaço, do seu frio-vestido, de um peso que carrega dia após dia, movido pela idéia de tornar o corpo cofre de tudo que possui. Sabia Glória que isso pesa? “Melhor ser vagabundo, que nem tem nada, que num tá nem vendo” me dizia o homem guarda-roupa. E assim, banho era aqui, acolá, poder se ver era quase nunca e ficava nessas dobraduras de panos protegidos, ausente de si.)

(Ela era chamada Criolina, andava cheia de latas e nesse baticum anunciava de longe sua presença. Quando o alarido soava alto, amontoava-se em torno dela um punhado de olhares. Era então chegada a hora: ela levantava a saia e se mostrava como veio ao mundo. A rua ficava em rebuliço: que pouca vergonha! Tudo que se dava a ela como calçados, vestidos, calçinhas e até absorventes era lançado ao chão, propositalmente. O sangue escorria por todos os cantos, mês a mês. Ficava o vermelho desenhado nos lugares onde dormia. Ria muito, cantava alto e dançava rodopiando em música. Por vezes, era tomada de um choro-rasgo, em golfadas de sentimentos de volume alto, falados em dialeto mesclado de bicho e gente. Nua e demente. Criolina seguia, inundada de si.)

Em um dia especialmente nítido, encontraram-se. Criolina logo que olhou o homem guarda-roupa, pode ver para além das dobras, cascas, folhas, tecidos de todos os matizes e texturas que o envolvem. O seu olhar o alcançou “antes de (dele) se especular”, e de vestir-se em vigília. Na condição de nua, esparramada e intensa, ela tomou a mão dele e percebeu seu desassossego, o seu temor de, mais uma vez, confirmar a ausência daquilo “que se travou feito pedra”. E seus olhos derramaram mel e ternura. Se já havia perdido tudo, por ter sabido desde sempre que sua condição é de nudez, de nada reter, de se esvair mundo afora Criolina poderia sim tomar a mão do homem. Poderia também, ao seu lado, fazer ressoar o alarido das latas e vestir-se de suas costumeiras vestes: a nudez.

Assim o fez. E ficaram os dois, sentados e circundados por um vácuo que se impõe feito trava e inusitadamente feito verbo que se apossa. Um vácuo cheinho de pulsação revestido de uma matéria de “silêncio que fala por tudo que não consegue dizer e entender”. Ela, por sua vez, “serelepe e vasta”, desajeitada e esparramada, pressente sua suposta ausência. “Talvez nada desperte” ou talvez seja essa a forma sua de despertar e de se desnudar. E segue, junto a ele. Criolina, movida de doçura cheia de vida vivida, o recebeu e disse: vamos parar tudo. Tudo, tudo, tudo e deixar o vento nos guiar.

Encontramo-nos: você tão absurdamente nu e guardado e eu tão escancaradamente nua e perplexa. Encontramo-nos e não interessa o que nos aguarda e o que faremos desse prelúdio. De quantos silêncios atravessarão nossa polifonia solitária, lírica e, por vezes, atravessada por ecos do nada. Puta que pariu dez vezes! Isso é fértil, me faz sentar e escrever em pé, banhada por eros, que tudo inunda e conduz.

Fim do encanto. De volta ao quebranto. Ela o surpreende no peso, assolado por uma aguda sensação de vacuidade, perplexidade, e antevê os seus olhos desorbitados. A mulher, finalmente o enxerga inteiramente nu e alcança o que só uma criatura como ela e outros seres raros saberão. Um dito desnudado, uma fala que transita crua e límpida, um afeto teso e tenso, uma amizade povoada de tantas coisas mais.

Criolina e o homem guarda roupa se viram e se sabem, o resto da história apenas os loucos, que nem eles, serão capazes de antever. Podem nunca mais se tocar, podem seguir bêbados, solitários e nus, vida afora. Mas, tem algo que o tempo não apaga e nem ela deixaria. Então, ela retoma a palavra que transborda.

Olhar para essas pedras como parte de você meu amor tomá-las uma a uma e ora brincar de cinco pedrinhas, ora jogá-las para longe e, quando preciso for compor um silêncio: eu, você, as travas, trancas, pedras, com encanto e/ou quebranto. Não importa eu sendo eu, solto teu cabelo e te dou a mão. Infinitos, como novelos esticados, tesos, finos, brancos e cheios de graça.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

o corpo num dia santo


Perdição

Para onde anda o amor?
Que amor?
Ele não sabe.

O sentimento de grande se inaugura no centro
Do mesmo modo que o mar é o céu pregado na terra
Que se derrama
E permite cerzir sal e tempo
o amor é uma imensidão ungida no corpo
que se esvai,
E fica.
.
Quantos corpos cada um tem?
Quantas vidas?
Ela não sabe.

Um desassossego se desloca sem lugar
Do mesmo modo que a terra é o mar inundado de areia
Que se enterra
E permite a ilusão de abortar o tempo
O amor é uma invenção do corpo
Que se retrai,
E fica.

Ei, por favor!
Você poderia me dizer
Que dia é hoje?

Semana ( nem tão) santa de 2008.

imagem:
O segredo dos segredos
Da série "amor e desejos"
Rose Canazarro

terça-feira, 7 de outubro de 2008


Eu vi meu anjo na contramão

sem asas para voar

então providenciei o primeiro raio da aurora

tornei o medo matéria-prima

as asas se expandiram

ascendi

Foi que voltei para buscar o anjo

Voltei para me buscar.

sábado, 4 de outubro de 2008

Para não dizer que perdi as cores



Eu fui buscar aquarela de volta


Há beleza no encontro fortuito
Nem um nem outro
Nada buscam
Sem meios-termos
Sem lados,
E caminhos.
Nem um nem outro


Que bonito são duas asas em vôo
Que apenas pretendem ir longe
E se descobrem em dueto no despenhadeiro
Nem um nem outro
Ainda que voem no mesmo plano
E se descubram no infinito

Que leveza são as cores dela
Derramando-se no branco do coração calado dele
Nem um nem outro
Mesmo quando faltam
O negror dos tempos cala suas asas
Elas habitam o pincel e a pallheta
E a paisagem se esconde sobre névoas.


Eis tu, minha aquarela branca! Tu que foste o mais belo,
Escondeu minha caixinha de lápis de cores,
Procurei no céu, na lua, nos lados, na luz e na escuridão
Desbotada e prenhe de um colorido perdido

Foi que olhei para a ponta dos dedos
E fui derramando azul, tão verdinho, aveludado de roxo, de um amarelo tenso....
E trouxe de volta a asas
De um e de outro
De todas as cores

Direito de Resposta a Duas Maneiras.