sábado, 19 de dezembro de 2009

Marluce, o delta e o arco-íris


Um olhar pode alterar o rumo das coisas. Uma interdição mais ainda. Ela entrou no navio gaiola e procurou um local fora do alcance do sol. De pronto armou a rede. Havia tempo em que a vista não alcançava a brancura azulada do delta. A rede era larga, com listras de todas as cores e nas varandas estava escrito: Marluce. Um presente tem outra textura, outro cheiro, outro sentido quando o ato de urdir os fios se prolonga por entres os dedos. Por ter levado um tempo que não se conta o presente de sua avó já trouxe o nome de batismo: arco-íris. Dona Branca entregou a rede à neta e foi revelando a intenção do mimo: para que sua alegria nunca se acanhe. Marluce guardou o presente, intacto, por vinte anos. As pequenas escolhas revelam verdades que ocultamos das salas de visita. Ao se deitar, os dois nomes bordados nas varandas se destacaram em fios esverdeados. Um nome duplamente marcado ganha existência. Curiosa troça do destino. A decisão de ida a Tutóia seguia a vontade de interromper uma infindável repetição; a de ser uma única mulher em toda a vida. Sim. Muitas de suas conhecidas haviam criado faculdades de se desdobrar, de se safar de um nome voltado para fazer bem. Ser sonsa pode salvar uma mulher. A vizinha da esquerda, dia sim dia não garantia seu capítulo particular de novela. Bastava o marido montar a bicicleta de noitinha, paramentado de vigia, que Lindalva acendia. A olhos vistos. Logo depois do presente de avó, Marluce teve o seu primeiro filho, seguido de uma leva. Como se diz no interior – um filho atrás do outro. O tempo não permitia um momento qualquer de suspensão, de omissão. Passou feito raio. Dois dias antes da data do aniversário de quarenta anos a mulher olhou demoradamente o Parnaíba. Evocou as curvas, as margens entocadas de mistério e o encontro com o mar. E navegou. De imediato, foi tomada pelas palavras da avó e se deu conta de que “arco-íris” estava fora da vista, naufragou no fundo do baú. Abriu o lugar de lembranças foi encontrando fragmentos de cores: um bilhete soletrando desejo, um faixa do concurso de miss simpatia e a rede aguardando horizontes. Deslocou-se. E reparou no chocalhado do barco. Era dezembro. A rede próxima da proa descortinava um infinito, largo, vasto e sem moldura para a coisa vista. Sentou-se na beirinha, balançando as pernas e ouviu da moça da rede vizinha: teu nome é Marluce? Ela respondeu: não viu, é arco-íris!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dirceu de Marília


Dez minutos foram suficientes. Esse absurdo cálculo dos instantes que não constam nas horas. Ela olhou o relógio assim que entrou na estação. O próximo trem logo apitaria e anunciaria redenção. Sair de um lugar leva tempo. Marília antevia o alvoroço dos dias. Ela não arredaria. Nem a alcunha de louca da torre, nem as janelas fechadas com sua passagem a conduziriam para longe da paisagem. O amor é o risível do medo. Quando Antônio se foi, carregou consigo a poesia que cada dia batia à porta da mulher amada. A hora era aguardada. Marília se enfeitava, banhava-se com água de colônia, escovava os longos cabelos e acendia o olhar. Muitos seriam capazes de jurar que havia uma alquimia nos versos que recebia. Ela entreabria o papel, suavemente, passava a língua na resina do envelope dobrado e mastigava letras amorosas em pratos fartos de lira. Mulher quando se sente amada risca sorriso sem motivo nos lábios. Quem acompanhava o farfalhar de suas longas saias subindo ladeiras, podia pressentir o amor que lhe subia às faces. Ela era farta. Ninguém ousaria apontar a loucura que já se instalava, sorrateira, nesse diálogo inexistente. Apenas Antônio fala. Como uma mulher suporta a ausência de um amor que se cala? Loucura deve ser um deserto de palavras de rumo certo restando apenas fragmentos de poesia. Marília soltou os cabelos, deixou o olhar vagar para além da Vila e se vestiu com túnicas soltas ao vento. Seu homem partiu em um barco à vela mesmo sendo eternamente dela. O tempo é tão mensurável quanto o curso de um rio. No alto da estação, letreiros marrons, em alto-relevo indicavam o destino do viajante – Mariana. Ele pularia do trem, tomaria as mãos da mulher já tão cansadas de apertar dedo por dedo e as conduziria até seus lábios quentes. Dez minutos podem unir continentes, mesmo que um trilho imaginário atravesse oceanos. Ela desfez a trança que entremeava os cabelos dourados, deitou-se no banco de madeira ao lado do trilho e fechou os olhos. A Maria-Fumaça estava exaltada naquele dia, fazendo mais alarido que o baticum do coração de Marília. O trem parou e ela continuou deitada por sobre o banco, derramando todo o tempo de espera e de fome. Desespero é palavra que se usa quando nenhum sentimento resolve. Passaram-se um, dois, três, dez minutos e ele não a conduziu de volta à sua encantada lira. Antônio cruzou a África e nunca mais voltou. Dizem que casou com a filha de um mercador de escravos. Pouco importa. Ela continua viva e sem nenhum sinal de onde espera, de onde mora. Os poemas de Antônio vagam por todas as bocas. Marília permanece nos refrões que compõem cada lira de Dirceu. Ela, nunca mais soube dela. Seria isso que chamam de loucura, essa morte em versos?


Para Marília de Tomás Antônio Gonzaga e para todas as mulheres que tiveram seus versos partidos

domingo, 11 de outubro de 2009

A ficção que me confessa

kandinsky

Nem era tarde quando você veio. A alegria ainda me vestia de vermelho. Aqui dentro, o fervilhar da vida abrilhantava gestos em descompasso. Gente grande, que fica reservada se espalha pouco por onde passa. Eu não, sempre tive essa existência derramada. Lembra? Eu não sou Rita, me chamo Glória. Isso significa dizer nada para você que me escuta. Eu sei do peso e da vastidão do meu nome. Se fosse possível um censo acerca dos tantos copos, pratos, jarrinhos, imagens de santos e outras coisas despedaçadas por um gesto meu, creio que poderia, por esse motivo, ir direto para o inferno. Desde pequena achei que lá encontraria um monte de gente desastrada. Não sei até hoje, onde eu começo e acabo. Existe fronteira? Você chegou e eu quase consegui quebrar. O quase faz toda a diferença. Um homem de chão e de mãos firmes sabe por onde pisa. Assim, sequer te aguardei. Uma mulher de asas espreita alguém de sua espécie. E voa, mesmo que o vento não permita. Muitos dos relatos de histórias de amor se iniciam nas narrativas das impossibilidades, nas demoras do vir. Eu posso alinhavar esse encontro por distrações, pontos cegos, rotas paralelas em coalizão. Você já havia estado ao meu lado, assim como os transeuntes invisíveis no turbilhão do tráfego. Eu tenho as pálpebras fechados para aquilo que não quero ver. Tua cor é chocolate quente no inverno. Um corpo é povoado por olhos e língua, por tal razão é muito mais sabido. Vagueia e tateia o breu. Você me toma as mãos e ensaiamos, em dueto, “it’s a long way”. Uma música é guia de cego. Dois para o mesmo lugar e um frio na barriga. Apenas eu e você fizemos par naquela sala. Foi essa a primeira vez em que te vi. Era morno e com cheiro de mato no estio. De quem planta e colhe. Tua mão desfiou um fino húmus e eu me deixei lavrar. Cada palmo de tecido liso é repuxado por entre teus dentes famintos. Deixar-se morder é a condição lenta de dissolvência. Eu te pinto por onde percorro e você exibe tatuagens de desejo. As marcas dizem de nós. Tu me casas contigo eu te caso comigo. Simples assim. O resto é silêncio.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Vias da Intimidade

Robert Doisneau


Ele dobrou a esquina e, de imediato, a vista turvou. Nada parecia familiar. A cidade que percorria há poucos minutos havia embaralhado imagens, fachadas e o desenho das vias. Pensou que a loucura deve se iniciar, na confusão dos signos; daquilo que se vê diante do que foge à imaginação. Ele andou mais uns cem metros e aprumou o olhar: não havia edifícios, não havia placas indicativas, semáforos. Tudo transcorria em câmara lenta. Homens e mulheres caminhavam como que num acordo íntimo entre o pisar e o ir. Vez por outra, alguém interrompia o trajeto e trocava palavras e acenos. Andar era um ato sinestésico, tátil, generoso. Prescindia sempre de um outro, flutuações de encontros por vir. A paisagem era placa luminosa derramando aquarela. O homem tentou apalpar o lugar em que se movia. Olhou as mãos, ainda tão nitidamente suas. É que um fio invisível interligava velhos, bebês, crianças, gente grande de todas as cores. Viu, esfregando os olhos de incredulidade. Uma mão, embora distante da outra, continha impressões, odores e aperto de dedos. Era como se um corpo iluminasse caminhos desencontrados. Cada um compunha múltiplos arranjos. Podia a cidade ter alcançado a condição de música? De uma polifonia dissonante e sublime? Poderia ter ele atravessado dobras através da vibração de tons desafinados? O homem foi examinando braços, mãos, pelos do corpo, dedo por dedo, fios de cabelo e, a cada toque, inundava-se de uma canção de descoberta. Um impulso nascente, de rasgo de sol no alvorecer, de luz invadindo retinas incidiu sobre cada parte de seu corpo, até então, imerso na escuridão. Ele costumava dizer “eu só sei do perigo quando levo um tiro no peito”. Diante de uma cidade que acaricia, sussurra segredos no ouvido, desliza suavemente a língua, o homem perde a guarda. Acende-se a dor da primeira queda de bicicleta, do costumeiro riso de sua gulodice escancarada, do escárnio diante de seus óculos “fundo de garrafa”, amarrados num barbante gasto e frágil. Ele enxerga. É subitamente tomado por um lampejo de amor-ternura diante de vidas apagadas, adiadas, retesadas num grito eternamente contido. Ele cruza a fronteira dos sentimentos. Entrelaçada à sua mão, dedo bordando dedo, transfigura a imagem dela. Em alto relevo, compondo figura e fundo. Uma elegia do amor.

domingo, 20 de setembro de 2009

Amor é imaginação


Se não chegas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar?”
Cecília Meireles


Era bem cedo, quando ele cruzou a porta. Não anunciou o nome e muito menos o motivo da repentina visita. Já foi entrando e recorrendo a quem lá estivesse: é aqui que vive a poeta? Ozanira, Joana de nascimento, tinha o dever sacramentado de interceptar a entrada de estranhos. Dona Cecília não podia escrever nenhuma linha, dizia a moça – com aquele fervilhão de gente atrás de falar com ela. Para chegar à escritora, primeiro tinha que tirar prosa com Ozanira. Ela era a dona do tempo. Escrever é um modo de se abster das horas. Naquele dia, Cecília despertou com uma réstia de sol perfurando a brecha da cortina e fazendo luz nos olhos dela. Imaginou atraso e se lançou fora da cama, em sobressalto. Essa mania eterna de correr atrás de "nãoseiquê" mesmo que o dia escorra em abundância. Imediatamente, o relógio ostenta a hora certa: sete da manhã. Quase brincadeira de mau gosto. Esperou por toda a semana esse instante de não ter obrigação. E acorda, exatamente pontual. Imaginou de pronto que sol é do gênero masculino, diferente da lua. Que ele rasga o dia alumiando tudo, furando a noite, não deixando um recanto permanecer apagado. E sem que qualquer coisa a demovesse da idéia, se pôs e esbravejar o astro e seus inconvenientes raios. Arrogante! Essa foi a sua mais leve palavra. Esse cerzir da vida leva um pedaço para, logo em seguida, estampar compensações. O aroma do café trouxe lembranças de menina. A fazenda Cachoeirinha, o mugido das vacas no curral e o chocalho das cabras no terreiro. Toalha de linho e bem ao lado da xícara de Cecília, a tapioca branquinha recheada com queijo coalho. Um estômago tem fome de generosidades postas à mesa. Ela toma o primeiro gole de café e sorri. Havia sido severa com o sol. Afinal de contas, fazer despertar pode ser uma forma de amar. Esparramou-se no sofá e deixou o tempo passar, descansado. Quando ele chega, o desconhecido, a mulher já ganhou ternuras. Aqui mora a poeta? Cecília se agita e, curiosa, responde: aqui mora poesia. E você, quem é? Ele murmura, por saber que cruzou a casa como um raio, e a faz recordar - meu nome é Mário. E evoca o motivo de um amor nunca dito. Eu sei da tua timidez. Não temas: “o luar é a luz do sol que está dormindo”.[i] Cecília se remexe no sofá, balbucia o nome do poeta e concede a esse amor o sono infinito. Ozinira, do lugar dela pensa alto – essa Dona Cecília escreve coisas no pensamento.


[i] “Verso avulso” de Mário Quintana

sábado, 12 de setembro de 2009

Rita e Sofia - metamorfoses de setembro

Frida Kahlo


Era setembro. De um tempo que foge por entre os dedos. Lá fora, o galo teima em cantar um dia que nunca amanhece. Um nome é um código de decifração. Ela decidira alterar o de batismo. Rita é graça de mulher que carrega tormenta. Apenas a de Chico leva sorriso e um bom disco de Noel. Tinha a mãe que escolher logo esse nome de santa. Ter nascido no dia 23 de maio poderia ter resultado em salvação. Um nome leva um tempo para ser inscrito. Precisava tatear um tanto da sombra, daquele outro nome que permanece nas entrelinhas da certidão. Sofia. Um chamamento que susurra. Deve existir um véu capaz de encobrir o nome da mulher. Foi dessa forma que ela vestiu, pela primeira vez, aquele tubinho cor de carmin. Havia três anos que ele esperava no armário. Vermelho é uma cor que não combina com vergonha. Rita compunha sua personalidade discreta com um cinza sobre bege, algumas vezes tendendo para o grafiti. Sexo é uma conversa que demanda arco-íris, aquarela pronta para se derramar. Foi Sofia quem percebeu a eterna indecisão de Rita. Uma mulher acompanha bem as rasuras da outra. Se não fosse ela, jamais teria sido marcado o encontro com o desconhecido. Ele parecia uma graçinha na web cam. Uma barba rala, um olhar de gente malina, de boa mira. Na tela, ela tinha os lábios pintados de vermelho e o lápis deleineando os inexatos verdes de seus olhos. Obviamente, desde o início, ela se apresentou com o nome de Sofia. Imagina se o clima teria subido tanto a temperatura se falasse: meu nome é Rita, quase como quem pede perdão! Sofia desceu as escadas em disparada. Se faltasse luz, ela não ficaria retida no elevador. Além disso, os vizinhos não sabem que o limiar é o lugar do desejo e ele não tem nome. Chegou antes da hora no Café Damasco. Sentou na mesa ao lado de uma tela de Frida Kahlo. E contemplou. Duas mulheres plantadas e nuas. Entrelaçadas à condição de fêmea, de relva, de mata selvagem. Ganhou, repentinamente, uma imprecisa convicção. Foi quando um homem atravessou a porta do café e indagou: é você Sofia. Ela, sem titubear, respondeu: não, meu nome é Rita. Um rasgo do sorriso de sofia, lhe tangia o canto dos lábios. Um homem , que pulsa, sabe que pouco importa como se chama uma mulher. Ele tateia e encontra nomes próprios e impróprios. Deitados, nessa tela primaveral de setembro.

domingo, 30 de agosto de 2009

Dormindo com o desconhecido

Toulouse Lautrec

Acordou aos pulos. Era escuro breu. Sentiu um formigamento na ponta dos pés. Um frenesi de não poder parar braços e pernas. Tinha pressentimentos de fertilidades. Abriu os olhos e se perguntou em que diabo de lugar estava metida. Um silêncio zunia o vazio da escuta. Nunca se sabe do que vem depois de quando o nada se instaura. Raquel estava adiada de experimentar o ponto escuro do prazer. Nessa noite, fora tomada de assalto. Uma mão quente abria uma fenda e pedia passagem. Um silêncio de homem feito fera, movido da vontade dispersada de palavras, se apoderou do corpo dela. Sem se apresentar, sem pedir a chave, ele burlou segredos. Encontrou-a no canto esquerdo da cama. Raquel quase sempre se manteve a beira, no limiar entre um dentro e um fora. No parapeito do tanque com cheiro de barro e vislumbres de rã, na ante-sala das maldades infantis, na reserva do time de handball. Era a borda, seu lugar de ficar, o canto de conter precipitações. É certo que, quase sempre, era alvo de comentários. Ler muito provoca lentidões. Ela gosta de botar o corpo fora. Será que sente o suficiente? Sua velocidade cerzia um jeito de se retirar. Nessa noite, uma ligeireza cobriu o rosto dela. O visitante levou as mãos até a altura de suas fechaduras. Movendo um jeito de ter prazer. Ela sentou-se e, subitamente, sentiu-se empurrada de volta. A tela escura permitia ver a nitidez das dobras. Dos músculos pendendo braços e pernas. Da boca derramada em saliva e palavras sem nexo. Em dueto. Do roçar da barba mal-feita, fazendo arrepiar cada palmo da pele dela. Um grito pode esperar calado um incalculável tempo para ser rompido. Soou a sirene dos que se derramam. Finalmente, Raquel reconheceu o lugar onde havia dormido. No centro da paisagem do desconhecido. O homem.

sábado, 22 de agosto de 2009

Eu abro a porta: um pedido mútuo de perdão



por que cresceste curuminha, assim depressa, estabanada, saíste maquiada dentro do meu vestido”
Chico Buarque

Ela soltou a mão. O vidro do carro subiu diante da cara espantada da menina. Fechada na solidão. O castigo por falar muito, por esconder-se para brincar, por deixar comida no prato. Ficar trancada no carro. Interromper o lugar de passar pode ser a forma mais rápida de se matar a coragem. Uma criança desconhece cancelas. Leva um tempo para que o abandono se torne nítido e mudo. Ela, de início, ficou aquietada. Na sua imaginação dos jogos de esconde-esconde, Maria acreditou que a mãe logo, logo voltaria. A feira engoliu a imagem da mãe em meio às barracas e ao vai-e-vem dos passantes. Lá fora, gente, muita gente. Os vidros fechados produziam a imagem de um filme mudo. Invertido. Dentro do carro havia apenas calor, o medo e um vácuo de palavras. A ausência faz barulho. Um nada se instaurou como fogo na alta temperatura do lugar fechado. Repentinamente, uma explosão devastadora de terror, sem lugar, sem nome tomou conta do corpo inteiro da menina. Não havia em volta dela qualquer coisa familiar, nem um movimento possível capaz de reter o desespero. Havia a possibilidade de um choro alardeado chegar aos olhos e ouvidos da mãe? Havia? Não. Esmurrar os vidros. Muito. Olhos de todas as espécies acercaram-se do carro. Uma multidão de desconhecidos fez ressoar para fora o choro mudo de Maria. Faltava ar, faltava fôlego. Uma mulher de cabelos longos e mãos de bondade, que nem as santas do colégio de freiras, roga calma. De fora do vidro, através de gestos, diz que um corpo pode sobreviver, mesmo que morra sozinho. Mesmo que uma criança tenha que entender, antecipadamente, a dor dos fios rompidos. Diante da incrédula multidão, surge a mãe de Maria. Tão cerceada e muda quanto a menina. Com uma diferença, parecia que ninguém se dava conta de seu fechamento, de ter sido castigada em silêncio. Todos os dias. Em volta do corpo da mãe, vidros suspensos parecem ter vedado seus transbordamentos, seu viço. É preciso um gesto que faça abrir as portas. Ela adentra o carro, senta e permanece muda. Até que a menina deite a cabeça em seu colo, banhada de suor e lágrimas. Até que a dor das duas seja uma. Até que a vida de cada uma siga outras rotas. "Se fosse permitido, eu reverteria o tempo". Abriria todas as janelas, que dão para dentro e para fora. E me permito, e te permito abrir entre nós essa porta de perdão. Amém.

domingo, 2 de agosto de 2009

A imensidão na torre




A paisagem desafia os limites da visão. Uma luz intensa, quase invasiva, derrama-se sob o traçado xadrez de uma fortaleza dos ventos. A mulher se encontra elevada, podendo ver mar e dunas, mangues banhados pelo fluxo e refluxo das marés, verdes confinados entre paredes e vias. O reinado da visibilidade. Sua torre ocupa o topo mais alto do planalto e alcança os quatro pontos cardiais da cidade que vagueia cega. Cada final de tarde, um sabiá, de canto melódico, pousa na torre e enuncia o tempo das asas e do vôo. Ela repete impulsivamente o mesmo movimento – toca o pescoço e tenta afrouxar o que restou das correntes. O lugar, por vezes, ainda é escuro e pesa. Lá fora, a claridade rasga o céu das manhãs. Uma existência trafega sob superfícies, entre abismos e pontes. Ao traspassar túneis, cavernas e lugares confinados Raquel vislumbra o que permanece. O tilintar do aço sendo afiado, o zumbido do frio e da fome e a chave do carcereiro entreabrindo passagens. Poderia ser de outra forma? O corpo guarda e preserva o raro, o sagrado. Mesmo perfurado, amarrado, forçado, amordaçado existe dentro dele um cômodo secreto que abriga o perdão, doses de ungüento e porções de encantamento. O deslizar da língua de Raul, o percorrer suave das gotas de água por entre os seios, sua desmedida ternura provocam na mulher um lastro de dor e paixão. A memória dá vida. O prazer guardado, retido abre passagem e afrouxa as correntes. Ela desperta. Abre a porta. É ele, o mouro temido, o guerreiro incansável e rude, de lábios grossos, mãos ásperas e certeiras que a conduz para além da escuridão. Uma mulher pode temer e esconder por toda uma vida suas agitações, estremecimentos e precipícios. Uma mulher pode se esconder. Daqui de cima Raúl aponta a direção dos ventos. Pequenos vestígios de asas crescem em meio a cicatrizes e marcas de correntes e cordas. Ela enxerga e move-se sob o lastro de luz. É dia. A moira entoa o canto livre do sabiá.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A nascente do encantamento: o mouro e a moira (parte três)




Silêncio. Daqui ouço os gemidos de Raquel e o arrastar das correntes. Um prazer em tom de lamento que alteia o som quando se instala o vácuo. Alguns fios podem compor uma forma de narrar história. Raul, mouro da dinastia Almorávida, chega a Península Ibérica trazido pelos ventos da ameaça de reconquista de Al-Andalus. Durante as cruzadas, protegido por seu elmo e armadura, Raul incorpora a alcunha de homem de ferro, o gigante. Não tinha cara, nem sabia do corpo. Restava uma dormência. O guerreiro havia tomado o lugar do homem. Suas mãos reconheciam apenas a superfície fria e sólida do escudo e o fino desenho da lança. Os braços eram talhados para movimentos de força, de gestos largos e firmes. Todos os sentidos do guerreiro se voltavam para uma única direção: o inimigo. Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas. Na batalha de Zalaca, um confronto decisivo, Raul e seus guerreiros derrotam o Rei. Os mouros ocupam o palácio, assassinam seus guardiões e, inusitadamente, encontram no calabouço a princesa Raquel, filha primogênita do Rei. Assim como Raul, ela também vivia uma batalha entre mundos de limites tênues. Raquel havia sido acusada de feitiçaria e de uso de poderes obscuros. Ela detinha o poder de misturar os códigos entre mundos forçosamente cindidos.
Não havia armadura nem elmo capazes de inibir a correnteza que tinha sua nascente no corpo da feiticeira. Ela via para além dos escudos, das paredes grossas do castelo, dos limites do reino, das linhas que pareciam separar céu e terra. Carregava um desassossego povoado por seres de terras diversas e proferia um dialeto intraduzível no léxico local. A presença e o domínio dos mouros tornam-se ameaçadora não apenas devido a extorsão de riquezas e terras, mas pelo temor das crenças inspiradas na magia e em tudo aquilo que não se vê. A princesa vivia no limbo, presa entre dois mundos. Já pelos denominados bárbaros é tida como moira encantada. As lendas dizem que as moiras, donzelas de irresistível beleza e poder de sedução, podem ser confundidas com montes, florestas e rochedos.

É desprovido da proteção de ferro sobre o corpo, de anteparo por sobre os olhos que Raul fita Raquel. Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente. Logo, é tomado por um fogo devastador, que só acende, só ascende. Ele sabe que não mais alcança sua armadura. Rende-se ao corpo. Toma entre as mãos a pele branca da princesa e avança, até alcançar um ponto com desenho de infinito. Penetra a escura caverna. Raquel, a moira, guardiã dos locais de passagem, fonte selvagem da manifestação do sobrenatural ela, fêmea encantada, toma a mão do homem e o conduz ao interior da terra. Entorpecidos, para que nunca se quebre o encanto. Com seu pente de ouro, tocado aos fios longos dos cabelos negros da mulher, Raul quebra a corrente que separa os mundos e permanece.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A armadura do guerreiro e as asas da feticeira (parte dois)


Camille Claudel

Raquel cerra os olhos, aperta as pálpebras até que o medo seja revertido em escuridão. A cancela do olhar é sua única via de fuga. Ela se encolhe e esconde a cabeça entre braços e pernas. Um rasgo de choro invade o silêncio dos gestos. O homem permanece ao seu lado. Em seu rosto delineia-se uma grave expressão de incredulidade. Uma mulher condenada por todo tipo de sortilégios não tremeria tanto diante do inusitado. Por outro lado, um homem que apenas conhece o poderio da força física não tem como esboçar temor diante da magia de uma mulher seguramente acorrentada. Ele havia escutado por todo o reino estórias prodigiosas acerca da feiticeira. Era alardeado aos quatro cantos seu poder de curar, predizer o futuro e o de provocar paixões passionais e traiçoeiras. Raul, o carcereiro, fora advertido para que em nenhum momento mirasse os olhos da presa. Seus movimentos no calabouço eram tão limitados quanto os de Raquel. O corpo de um homem e de uma mulher sabe das ondulações do desejo, mesmo que falte a vibração das palavras. Raul era um mouro destemido e, por isso mesmo, se julgava inabalável. Já fizera parte das linhas de frente das cruzadas e considerava o calabouço o lugar para um breve descanso. Costumava dizer que seu corpo era armadura e por isso dispensava escudos. Havia ganho a alcunha de gigante e essa batalha era considerada a mais branda de sua vida. Uma mulher com correntes envolvendo cada braço, pernas e por volta do pescoço parecia não oferecer ao lutador nenhuma espécie de risco. Ele estava à salvo, afora algumas zonas de percepção consideradas as mais valiosas armas do carcereiro. Seu faro de caçador, seu ouvido de predador, seu olhar de tiro certeiro. Todos os sentidos estavam ativados para o bem e para o mal. Os ouvidos não têm pálpebras e os olhos não sustentam invólucros de ferro. Ele não contava com a imagem de pingos de água deslizando por sobre os seios brancos de Raquel. Ele não imaginava que seus cabelos pretos volumosos tangenciassem a cintura e emoldurassem uma beleza de fêmea selvagem. Ele muito menos antevia a delicadeza e o silêncio aquietado na superfície da pele e dos gestos de uma mulher entre correntes. Ao deixar-se embeber por cada gota, ao burlar nós, cadeados e cancelas Raul foi sacudido pelo pranto ruidoso de Raquel. Ele não apreendeu esses golpes. O que fazer? Repentinamente, o carcereiro toma as chaves e afrouxa o metal que envolve o pescoço da mulher. As mãos ásperas do homem percorrem o caminho de lágrimas. Em seguida, seus dedos entrelaçam os fios do cabelo de Raquel em movimentos contínuos de cima até alcançar às pontas. Uma a uma. Havia um tempo sem que nada fosse dito. Apenas ruídos. O corpo é que fala as palavras. Cada fio desalinhado de cabelo, cada ternura deslizada parecia romper um quantum de sons abafados. Como rito primeiro de criação do mundo, Raquel fixa a visão em direção aos olhos do carcereiro e entoa uma canção. Um som modal, como um tufão de intensidade liberta o gemido acorrentado da feiticeira. O encantamento se sobrepôs à paisagem. Um corpo de mulher avoa livre em meio a escuridão. Não havia mais correntes nem armaduras. Apenas o coração de um homem abrigado nas asas de uma mulher.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

As correntes do desejo - parte um

Camille Claudel

As correntes contornavam pernas e braços. Uma réstia de luz perfurava o topo da parede e incidia no dorso da mão esquerda. Ali, não havia tempo. Era lua cheia ou apenas um raio de sol cruzava o escuro de uma noite que parecia eterna? Raquel sentou cambaleante e deslizou o olhar sobre o corpo até alcançar os pés. Não fazia calor nem frio. O vestido azul-turquesa aveludado compunha com os olhos um infinito céu de tristeza e ausência. Seus seios pareciam ter escapado do vestido. Sede, muita sede. A vista turva fez girar o lugar. Ela tenta levantar-se e é imediatamente impedida devido ao peso das correntes e a um outro, invisível, que se instala no vácuo das lembranças. Os músculos do corpo de um homem e de uma mulher têm o tônus fortalecido por cada fragmento da memória que permanece. Raquel perdeu os fios narrativos de uma história que precisou ser apagada. Ela se curva e aguarda a entrada do carcereiro. O rangido da porta de madeira sendo arrastada no chão de pedra confunde-se com a voz daquele que a mantém sob vigília. Ela nunca ouvira um som desde o momento em que fora recolhida ao calabouço. Raquel recosta-se na parede esburacada, coberta de limo e recebe comida e água. Em seguida, suspende os olhos com a bacia nas mãos e entorna o líquido. A sede faz escorrer, já a fome não deixa escapar nenhuma migalha. Os olhos do carcereiro seguiram o destino da água e devoraram cada parte descoberta do corpo de Raquel. Ele tinha cílios fartos, caindo por sobre olhos cansados de atravessar abismos de mãos vazias. Uma mulher sabe quando um homem permanece deserto. Ela arrastou-se, segurou cada uma das pernas do carcereiro e se recostou. Os cabelos longos de Raquel vestiram seu rosto e penderam aos pés do homem. Ele se acocorou, tomou-a entre as mãos, afastou os cabelos da mulher e passou a língua em cada gota de água que permanecia em seu queixo, por sobre o pescoço e por entre os seios. Raquel deitou seus olhos de cor amarela, imprecisos como fachos de luz em flecha veloz. O homem sentiu correntes de calor enredar braços e pernas, enlaçar pontos de cruzamento entre vigília e vontade. A chave perdeu-se do lugar-passagem. Não havia saída. Estavam presos.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

As veredas do olhar




Eu aprendi a cavar com as mãos as dobras do silêncio. As coisas ditas podem receber camadas e mais camadas de esquecimento ou de recusa. Ele cruzou a passagem secreta, logo no primeiro dia. Eu sempre preferi ficar nas últimas cadeiras da fila. Passar despercebida em sala era uma forma de deixar espaço para o devaneio. O professor de literatura era tão magrinho que as pernas davam voltas ao se cruzarem debaixo do birô. Isso acentuava o tamanho de seus olhos e o mover-se rápido das retinas. Foi assim que senti a pegada do seu olhar alcançar uma impenetrável zona de reserva. A aula era sobre “Dom Casmurro” e todo o afã de Rosilmar era o de tentar descrever o que denominava da personalidade felina de Capitu. O nome dele era esse mesmo: Rosilmar. Fiquei ensaiando indagar – professor esse achado se deve a uma junção do nome do pai e da mãe ou do mar e da rosa? Naquele momento, nos mudos anos setenta, perguntar podia entreabrir zonas de risco. Como já falei, a penúltima cadeira era um refúgio seguro e mudo. Ele chegou, fez a chamada e não sentou nenhum segundo a mais. Movia-se percorrendo filas de carteiras ocupadas pelas tantas meninas-virando-moça. A ordem era despistar das freiras austeras a malícia que, sorrateiramente, teimava em deslizar. Todas as manhãs, as bainhas das saias eram observadas durante o cântico bocejado do “Alô, bom dia, oh como vai você”. Esconder era o modo possível de carregar o proibido. Os olhos verdes e famintos do professor arrastavam-se de carteira em carteira. Enquanto isso, ele lia, em voz alta, trechos diversos que diziam dos mistérios de Capitu. Falava de mulher da forma que eu apenas acabara de pressentir. Pedi a Deus para que ele não me alcançasse. Foi quando, repentinamente, Rosilmar mudou a cadência dos passos e parou ao meu lado. Foram segundos de uma perplexidade mútua com sopros de eternidade. Ele me apontou e falou para a sala em tom de confidência violada, ela aqui carrega o mesmo matiz, o mesmo abismo dos “olhos de ressaca” de Capitu. Eu poderia muito bem ter baixado ou desviado os olhos; poderia ter poupado o homem daquele vexame. Ele desconhecia. Minha tradição é do cangaço, dos duelos de sangue, do galope veloz do cavalo nas veredas. Fui tangendo a vista na direção do professor, lenta e certeira. Tomei o cabresto entre as mãos e disse: os seus trazem maresia e perfume de rosas. O abismo se move sob os pés. Eu aprendi a cavar o mistério.


p.s- minhas ausência de aqui estar, de ler e percorrer todos os escritos que me alumiam, saibam, são atravessadas por muitas, muitas razões. voltarei!

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Maria Bonita e o galope do pistoleiro


rédeas soltas
tamanho sem beira
silêncio na ponta da língua
olho certeiro de cangaceiro
compondo a retina

o alvo se esgueira

mãos ao alto
corpo sem fronteira
sussurro sobre ombros
desejo armado da presa
furando vereda

estampido grito do vaqueiro


pernas livres de esporas
cavalo sem cela
galope de dois em desatino
dedos molhados da pequena morte
invadindo a fera

cheiro de fêmea não tem cancela

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Ave rara




Adiantaria dizer, me faltam frases? O bosque fica silenciado ao final de tarde. Logo, logo seremos tomados pelo frenesi do trem da alegria. Da última vez, vi uma criança aos prantos diante do Cascão. Minhas mãos não têm lugar. Eu poderia me tornar catadora de ditos capazes de fazer você se retirar sem sequer olhar para trás. Uma palavra solavanco que acabasse lançando para fora esse sentimento incômodo, esse passageiro sem bilhete. Eu disse adeus em uma sílaba. Você me pediu para soletrar uma sensação sem vestes. Que belo o cenário da despedida! O playground é um convite a olhar para trás. Brincar de gangorra exige pesos em proporção. Fiquei elevada e vi teu corpo assentado rente ao chão. Esvaziado da vontade de partir. Vi também a fita azul dos três pedidos, ainda presa ao pulso. Lembro. Fechei os olhos e firmei cada desejo enquanto você entrelaçava os nós. Não há sinestesia entre nossos signos. Teu ascendente terra fixa a reserva demarcada. Todos os pássaros apreendidos em cativeiro são libertados nessa ampliada área de preservação. De cima da gangorra sigo o bater das asas de uma ave rara. O Urutau se camufla diante dos galhos do frondoso Carvalho. Você sabe que sou capaz de seguir movimentos de vôo e esquecer o risco de te lançar fora dali. A minha fita da sorte há muito se partiu. Eu acho que confundi os pedidos. O primeiro era de viajar de carro por tempo indefinido. Talvez, não fosse. Acabou de passar entre nós o Cebolinha seguido de crianças de todas as cores. O trem parou na estação. A nossa diferença se alinhava desde os primeiros laços. Nenhuma promessa tua fica esquecida. Você é capaz dizer os pedidos na ponta da língua. Bom ver tudo daqui de cima. Deve custar esse ato de sustentar com os pés no chão o peso da partida. O Urutau me fixa o olhar. Ele pode ficar estático por um dia inteiro e não se assustar com qualquer ruído. Somos aves de espécies diversa. Pedir para descer vai agravar a gana de me reter. Minhas pernas doem. Preciso confirmar o rompimento em movimento duplo dos lábios. A-Deus. Houve silêncio de alegria. Pulei em compasso de fuga. O Urutau deslocou-se até o pé de tamarindo. Sem olhar para trás. Eu me banhei de verde. Talvez fosse esse meu último pedido.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A vela, a água e os corpos


A banheira era insuficiente para que as pernas dele e as dela permanecessem paralelas. Ele fez um arco, suspendeu-a e arrastou-se suavemente para que os corpos se acomodassem. A água morna, o entorno branco aguardando cores quentes e a vela acesa compunha a cena do banho. Jatos gentis de água lançavam-se em correnteza pelo dorso das costas dela. A mulher fechou os olhos e sentiu pequenas gotas deslizarem através da testa, embeberem os cílios até seguir o destino da face. Ontem mesmo, fora elogiada por ter olhos de quem promete viagem sem destino. Uma moça do salão de beleza jurou que se fosse dona de uns parecidos, certeza, já teria feito muito estrago por ai. Falou com essas palavras e todas as letras de malícia que ficaram ali implícitas. Por que não? Uma mulher quase nunca sabe do que pode dar passagem. Leva um intervalo de tempo para que se aqueça a água da banheira. O necessário para que os líquidos se agitem e sigam os fluxos. Recostada, ela evocou imagens de fragmentos do corpo do homem. A boca desenhada e farta, mãos de pegada firme e rasteira e um murmúrio de voz que ecoa em pontos diversos da pele. Ela sempre gostou desse jogo de trazer à lembrança o sujeito presente do desejo. Como o eterno movimento lúdico das piscadelas. As coisas mudam de lugar a depender do olho que se abre. O corpo diante dela remexeu-se. Uma porta de visão se entreabriu e pingos de água de alta temperatura acenderam a lanterna da vontade aguardada da mulher. Do lado oposto, o homem que enxerga iniciava movimentos lentos. Havia atmosfera e promessa de dissolução. Os dedos dele percorreram um começo qualquer das pernas dela e seguiram o caminho do fogo. Há um momento em que o mundo acaba e nada mais há de ser dito. Apenas que Norah Jones cantava com sua voz rouca Sinkin’ Soon e que um cheiro de cabaré, espumante, vela queimada e sexo misturavam-se às espumas. Seus olhos guardam os vestígios arranhados dos estragos. Como fios desenhados do desejo entre suas pernas.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

estou participando desse blog coletivo, que considero muito interessante, convido todos vocês a visitá-lo:

http://www.trezentos.blog.br/

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Para além do tempo


Existem continentes vertidos sob meus pés. Eu nunca fui mulher de viver uma só vida. Esse lugar em que agora moro abriga um tanto de outros. Fico aquietada e escuto vozes de fantasmas cruzando portas. Uma fina camada de areia separa porões e sótãos que guardam objetos apartados de mim. Habito um lugar que não alcanço mais. Arqueólogos de um futuro imperfeito encontrarão relíquias de um caso pretérito de amor: cachos enlaçados amarrados em laço de fita, tua voz rouca entoando canção de reconciliação e folhas secas de um dia de primavera. As dobras do desejo criam camadas paralelas de tempo. Ficam vedadas as passagens para outros lados de uma mesma história.

Nesse presente, movo-me sob domínios férteis e gentis. Um amor me tomou as mãos, desvendou o segredo entre lábios e me fez alcançar outra dobra de chão. Preparei um vestido branco de algodão e vou trançar no cabelo flores de jasmim. Até o coreto da praça se enfeitará de música e fanfarra. Quero uma canção capaz de despertar cidades adormecidas. Vou ser a primeira a levantar a barra do vestido e rodopiar. Eu pedi para que minhas amigas e amigos falem bem de mim e de você ao santo protetor de amores nascentes. Ele é Rafael, arcanjo que brinca comigo de vale tudo. Eu digo o nome do desejo e ele me traz a glória. Ganhei um anel com pedrinhas que brilham alegria e confirmam a mulher escolhida.

As vozes de ontem ecoarão em campos vastos de infinitivos verbos futuro: criarei, fecundarei, morrerei banhada de vida. Até que o corpo mova-se em partículas de luz e atravesse barreiras do tempo. O amor dará passagem em ritos de fertilidade. Eu serei terra plantada de colheita farta. Filhos de todos os continentes me prosseguirão. Um vento veloz e aves de arribação espalharão sementes. Estará escrito: ela atravessou cancelas.

domingo, 26 de abril de 2009

Carta para uma deusa com um p.s para Deus


Eu te carrego entre traços rabiscados. Minha mão e a tua, espalmadas, exibem dedos longos. Uma música é tocada no movimento de teus lábios. Teus olhos se movem para lugares distantes quando a voz de Roberto diz: “detalhes tão pequenos de nos dois são coisas muito grandes pra’ esquecer”. Ele nunca aceitou esse outro que invadia sorrateiro o teu folhetim, o teu rebolado na ponta dos pés, essa boêmia de Noel espalhada nas calçadas de Santa Isabel e a entidade suspensa que tu carregas e te espreita. A tua busca se inicia nas escadarias da Glória e descamba nas festas de Iemanjá. Eu surgi dessa promessa, mescla entre sagrado e profano.


Movo-me reta como se carregasse um cetro invisível e um domínio encantado. Você me deixou um titulo de nobreza. Eu guardo aquela foto em que você me sorri e comemora o nascimento entre peitos e braços. Você é deusa de reino distante, daquelas que cruzam o tempo em cavalo veloz e eu parte do teu bando. O vestígio de tua passagem se desenha na ponta do sorriso que faz mover o canto esquerdo dos meus lábios. Tenho um tanto do teu olhar que vagueia curioso e outro tanto que se derrama felino. Eu aprendi a dançar gafieira sob a mira dos teus movimentos sem nunca teres tomado minhas mãos nessa direção. Teu lugar de dançar é sagrado. Eu carrego a Lapa em noites de boêmia. Meus passos te acordam.


Não nascemos para ter marido, essa entidade amorfa, embora o amor bata quase sempre em nossa porta. Casamos com amantes eternos. Gasto tudo que tenho em jogos de alegria. Feito comer em mesa farta, viajar sem destino e ter filhos em demasia. Tenho tido sorte mamãe. Quando fico cansada trago para junto a imagem do Cristo Redentor de “braços abertos sobre a Guanabara”. Eu hoje moro perto do céu e já suporto o brilho das estrelas. Diz para Deus que sou grata por sua extrema gentileza comigo. Ele me carrega. Quando preciso dormir braços e pernas me velam. Quando for partir um séqüito de borboletas e aves de penas leves me conduzirá. Livre. E estará escrito: ela cumpriu a promessa.


para Suely

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Desarnada


Eu sou banhada por pressentimentos. Trago no cabelo uma marca de antecipação do tempo e uma mancha escura desenhada no ventre. Vejo um tanto de coisas que vagueiam superfícies. Nasci sob o signo dos ventos. Mesmo quando o corpo ocupava lugares de ficar, movia-me sob possibilidades. Habitava esse interregno, esse lugar de passagem, entre o ponto e o infinito. Por isso, meu corpo tantas vezes buscou espaços apertados entre portas e paredes, lugares velados entre cortinas, esconderijos vedados da vontade de partir.


Minha natureza é andarilha. Se você olhar demorado, verá entre minhas unhas um tanto de barro e argila, pequenas serragens de madeira e estilhaços de pedras. Precisei fundar um torrão de terra, até ter lugar para voar e retornar. Como disse, sou atravessada por sentimentos. Tenho um olhar deslocado das imagens fixas, dos atravessamentos que margeiam o leito visível dos rios.


Minha atenção é movida por correntezas. Por isso, tantas vezes me assustei com a beleza e a grandeza dos espaços sem cancelas, sem limites para minhas pernas. Eu precisei criar minhas próprias paredes, um telhado com clarabóia e vista para o céu. O vento assobia nos meus ouvidos para que eu não deixe asas presas em cadeiras e birôs. Conservo passagens secretas, roupas leves e um vento veloz aqui dentro. Eu me salvo entre brechas. Cada letra é uma pena delicada e única. Eu me apego a palavras que não existem. Todos dizem que sou muito, muito desarnada. E sou. Ainda assim, se sentirem minha ausência, olhem por detrás das portas, vasculhem sombras e casulos. A menina vadia e avoante que me habita, às vezes, sente partida a linha da pipa. Quando isso acontecer, apenas sinalizem pedaços amorosos de chão. Ela aportará de asas abertas. Dentro dos seus olhos uma vasta floresta e um punhado de vaga-lumes. Pequenos vestígios de pressentimentos.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A guardiã do tempo, a manga e o amor


O nome dela é Cosminha e seu mundo vive sob eterna neblina. Ela se assemelha aquelas imagens de santas envoltas em fumaças milagreiras. Tão miúda que seu sorriso se arruma debaixo dos meus braços. Cada vez que tomo o caminho das pedras e desço em sua direção, sei que atravesso uma zona fronteiriça. Toda a mata verde contorna sua pequena morada e emoldura gentileza. Nem por isso ela dispensa seu cão de guarda de olhos amarelados e orelhas suspensas. Ela sabe dos que se matam na ponta da faca por pequenas desavenças, dos que bebem e deliram a ausência da pessoa amada e vê a voracidade dos homens grandes que devoram e desmatam a terra dos pequenos. Eu sigo aqui o rastro de suas palavras. Para evitar o perigo ela mandou construir um portão de madeira preso apenas por um pedaço de arame. Ela vive sozinha em sua casa no topo da Linha da Serra diante da paisagem que margeia o sertão. Fala que medo tem é de gente que carrega maldade no coração. A terra a perder de vista que possui na serra é símbolo da passagem de todos os seus ancestrais na extensa Linha. Ela repete: vender para que? O dinheiro some, a terra fica. São poucos os móveis que ocupam os quatro cômodos da casa. Ela retém o que precisa para viver: pedaços de pão e retalhos da memória. Seu fogão de lenha resiste ao tempo e deixa permanecer intacto o de gás, coberto com um pano bordado. Faz sua própria comida, varre o terreiro, lava seus panos e remove, cotidianamente, a poeira do tempo. Tem sempre água benta e reza benfazeja para os visitantes que se aproximam.
Eu trago aqui Dona Cosminha, essa senhorinha de 90 anos, para dizer do amor. Num final de tarde, na sua sala ela me indaga - bichinha você sabe o que é um grande amor? Meio sem jeito respondi, acho que sei e em seguida indaguei – por que Dona Cosminha? Ela se levanta, mostra uma frondosa mangueira e narra sua história com os olhos banhados de imagens.
Meu velho, Valdemiro plantou essa mangueira há muitos anos atrás. Você sabe né minha filha que se leva muito tempo, às vezes até nunca, para se comer o fruto de uma árvore plantada. Um belo dia, vindo da roça, meu velho entra com uma manga-rosa na mão. A manga era tão perfeita que parecia um gesto de bondade de Deus. Ele senta ao meu lado, toma a manga entre as mãos, e com sua faca vai tirando talhos finos da casca. Quando o amarelo já estava todo descoberto ele corta o primeiro pedaço e diz, é seu Cosminha e, em seguida come o segundo. Esse era o fruto mais esperado. Isso é amor. Você entendeu agora minha filha?
Fiquei plantada no silêncio. Diante dos meus olhos havia passagem para uma mangueira carregada de lembranças. O que diriam os filmes marcados pelo drama, os romances conturbados, os poemas sôfregos e os capítulos passionais de novelas diante daquela forma de amar mesclada aos ritos do tempo de plantar, colher e dividir ? E eu, teria algo a dizer? Olhei por dentro da minha paisagem amorosa e vi extensões de terras a semear. Eu me perco dentro do meu próprio chão. Haveria algum fruto entornado ao relento? Olhei para ela, que se diz agora minha mãe preta e revelei, com o coração apertado – preciso aprender sobre o tempo Dona Cosminha, água benta capaz de molhar e fazer vicejar uma história de amor. Desde esse dia plantei uma árvore.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Abismo


Eu tremi diante dos teus olhos. Tuas palavras abriram portas e janelas sem anúncio de chegada. Vocë sabe como me fazer derreter e me deixar boiando no fluxo do teu olhar. Um dia já fui me buscar tão longe! Eu sou testemunha que um só corpo não é capaz de abrigar uma vontade em desatino. Há um abandono de justa causa todas as vezes em que pedaços de mim partem em tua direção. Eu nunca tive fronteiras. Por isso, quando tuas palavras vibram como cordas musicais eu prenuncio vias de perdição. Finco os pés no chão e tento me dizer fixa, de contornos precisos. Não posso ir embora para vocë. Não existe trilha sonora capaz de traduzir em imagem nossos enlevos. Ficou turva a memória. Entre nós dois existe um despenhadeiro, uma ponte elevadiça suspensa no tempo. Embora saiba voar, tenho medo de alturas. Existe um sopro de música entre o chão e o planeta de nós dois. Ouço acordes de uma cançao sem gravidade. A tua voz me transporta em um tapete nada mágico e mudo de futuro. Nunca soube ninar esse sentimento insone que atravessa dobras do tempo. Vou repetir até que ouças: desperto e tremo diante de teu olhar. Danço que é para disfarçar esse turbilhonar do meu corpo diante de tua visão. Misturo passos e tropeço entre teus pés. Tua mão enlaça minhas costas e toca minha indecisão. Eu preciso ir. Nunca entendi porque teus braços prendem minhas pernas bem no momento em que ensaio gestos de partir. Eu continuo pequena e as estradas são tão largas. Não tem ninguém que aponte a direção de mim. Eu temo não saber o caminho de volta e permanecer nesse espaço infinito de passagem. Por isso, continuarei atravessando o deserto sob a mira do teu olhar. Trëmula e lívida. Deitada por sobre o abismo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Suaves armadilhas



Do meu lugar floresta te vejo. Uma visão fosforescente de bicho que espreita o alvo. A rede atirada rente ao chão detém e enlaça o objeto do desejo. Você presa, pulsa de vontade. Há pressentimentos de que minha chegada restaurará aquele som-gemido que agita noites e burla posições horizontais. Eu não tenho modos. Meus dedos deslizam por cada nó e lambem as marcas da espera. Eu desenlaço os fios da imaginação. Tenho lápis de todas as cores. Fiz uma borboleta de traço livre no teu ombro esquerdo. Aprendi a fazer fitas e desatá-las com a ponta dos dedos e dos dentes. Alcanço o lugar do labirinto e miro teus olhos inquietos. Entrelaçados aos meus pés. E miro até nem saber onde estou. Você sabe que posso me perder.


Quer que eu te solte?


Você se contorce e eu me deito sobre tuas costas. Cada uma das palmas de minhas mãos toca teus ouvidos. Abro pequenas conchas e falo baixinho: tomarei tuas pernas e soltarei as cordas. Soprarei aromas de madeiras sem lei por entre os relevos da paisagem de tua pele. Sei que tu me escutas. Meus olhos centelhas de verão eriçam teus pelos e derramam pequenas brasas. Você aguarda a brisa de orvalho que se espalhará sobre teu corpo feito combustível. Ela se alastra. Ouvi um estouro de boiada. Você escuta fogos de artifício? Eu retornei para a mesma rede em que te encontras. Uma seiva bruta desliza suave entre braços e pernas e nos conduz ao sol. Sou apenas porções de pólen entre teus lábios. É vasta a floresta.

(estive um tempo viajando, por essa razão passei um tempo sem postar e nem comentar, fico feliz em retornar o contato com todos vocês)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Fetiche



Traço fino da meia
preta inter liga
na coxa
o caminho incerto dos teus dedos


Nítido centro
mistério água árdua
no umbigo
a sede do teu dedo em desatino


Salientes seios
vestidos de vermelho
no colo
teus dedos abrem passagem


Transparência da fenda
meio rósea entre abre
no ventre
um lugar para que teus dedos entrem


Abertura dos lábios
molhados de púrpura cor
no rosto
cravam entre os dentes teus dedos


meu corpo,
nas tuas mãos

(para o homem que assim me enxerga)

domingo, 22 de março de 2009

Náufragos

Juan Miró

Eu não soube dizer adeus. Você me buscava as mãos navegando um mar de delicadeza em meio à turbulência. Ausentei-me de um continente de nós dois ainda mergulhada em abraços. Teus pés se entrelaçavam aos meus debaixo dos lençóis, cada vez que os trovões rugiam céu afora. Lembro que você me laçava ensaiando gestos de salvação. As ondas eram tão altas meu bem e tão frágil a embarcação. Eu não sabia e nem sei nadar. Embora você me segredasse nós-dois-para-sempre, eu calculei o tempo. O medo é uma forma de distrair a razão. Fui arrastada pela correnteza sinuosa do temor da entrega. Você não fez respiração. Alguém ouviu falar dessa natureza das águas? Elas se aproximam sem fazer alarde. Uma nau sem asas nem velas me conduziu para longe de tua terra. Você me seguiu mar-adentro feito escafandrista na mira de um navio valioso naufragado em domínio incerto. Seu olhar vagou as profundezas e eu elemento ar flutuei superfícies. Fala a lenda que aportei. Hoje sou ilha e semeio silêncio em todos os dialetos. Isso não me remove a tolice típica dos sobreviventes. Ninguém pense que exibo troféus desse selvagem torrão de terra. Sou inexata ao falar de um amor que o mar trouxe feito dádiva e carregou. Não busque em meu olhar alguma forma de explicação. Pouco importa é o que resta a dizer quando tudo faz diferença. Aprendi a mentir acumulando verdades. Eu tenho provas cabais de que a tempestade pode ser uma forma de travessia. Longe da tua boca pude fundar uma nova língua. Ela emite sinais para viajantes de todas as partes. A luz do farol quando apaga, acendo coragem com fogo de lenha. Minha avó do vale do Jaguaribe me ensinou a retirar do mato os galhos mais combustíveis. Nem por isso me livro dos frios de tua ausência. Contento-me em plantar cada palmo do lugar. Tenho adubos que trazem sementes com vontade de brotar. Nem mesmo assim me livro dos desertos. Em teu mundo existe um dito capaz de fazer vicejar. Meu corpo não esquece, nem desiste. Na minha garganta estreitada ecoa socorro com gosto de criação. Eu grito terra me avista e do lado do abismo é lançado um bote salva-vidas. Perdão. Eu não tenho abraços que me façam ficar. Minha dor lança cordas a bombordo e teu nome a estibordo. Em que momento a tempestade te arrastou de volta aos musgos, pedras e gritos dos lugares ermos de mim? Eu nunca saberei dizer adeus. Entre meus dedos encontro fios de teus cabelos enroscados à minha solidão. Você náufrago de mim, eu de você. Navegará entre nós uma palavra de salvação?

quarta-feira, 18 de março de 2009

Oh pedaço de mim”, oh metade que fala de mim




Eu tenho retido um grito sobre você. Nunca pude dizer do rasgo que me causou esse nascimento ao contrário. Essa canção de ninar presa na garganta. Pressenti que você partiria sem sequer chorar a primeira respiração. Eu preparei panos bordados de borboleta para você, embora meus dedos costurassem vidas tortas. Embora, meu choro de menina ainda se dirigisse para detrás das portas. Eu sei. Você me cresceria e eu abriria janelas para ver passar o tempo de nós duas. Que medo te impediu de ficar aqui? Eu era uma menina esperta. Sabia dos esconderijos que vedariam a aparição de fantasmas e a invasão dos monstros da noite. Eu nunca te diria que eles não existem. Eu os ouço, a cada madrugada, espreitando o sono dos que perderam algo precioso. Dos que se sentem partidos. Eu possuía senhas e ainda as carrego comigo até hoje. Nunca se sabe não é Raquel? Para que elas servem, as senhas? Para que algo dê passagem e não te conseguiria dizer mais nada. Eu me disfarço de mim mesma, brincaríamos de personagens. Uma mulher precisa de muitas peles. Poderia ter te conduzido no meu colo e nos salvado. Eu tinha um avião a nossa disposição. Nem te mostrei minha cidade em miniatura, toda feita de papelão e imaginação. Era povoada. Eu guardei minhas bonecas para te dar, com roupinhas costuradas na agulha e linha. Elas iriam te receber de braços abertos mesmo você sendo minha. Essa sua vi(n)da sem chegada deixou uma parte de mim exilada. Eu te digo, essa mulher que escreve, espera ainda essa outra que nunca chegará. Não nos salvaremos e é essa a condição de todas nós. Eu fui tecendo um destino ao que te falta, ao que me falta em cada lugar por onde passo e me permitem fazer nascerem novas escrituras. Desse modo, me acompanhas e eu te faço falar. No meu colo tu dormes e eu amanheço de asas abertas. Não temos nada a perder. Somos pequenos pedaços de palavras que voam como flechas. Arqueiros de um deus sem nome. Eu te carrego, tu me levas e nos deixamos ir. Enlaçadas. Até o ponto mais cego da visão. O infinito.


para Raquel, que hoje teria 30 anos

domingo, 15 de março de 2009

o amante


Seu coração batia aos pulos. Ela pedia para que ele aguardasse o momento certo. Que não misturasse os fatos. Que cada estremecimento escoasse no exato instante em que as portas se abrissem. Sempre fora precipitada.

A cama parecia tão ninho e as pernas dele entre as dela um pergaminho de gentileza. O amor fez germinar esse chão. Ela tem se sentido florescer.

Pensamentos carregados de imagens desenhavam enredos de múltiplas escrituras. Ela tinha urgência. Afinal de contas, as palavras corriam até os dedos e pediam passagem. Sua boca enchia-se de uma saliva quente, mesclando voz e suspense. De quantos nomes se faz uma estória? Elas nascem dos lugares ermos que abrigam imaginação e lembranças que resistem. Ela leu num canto qualquer que era preciso reter-se, conservar os líquidos. Isso lhe pareceu tão kantiano.

Ele beijou suavemente sua boca. Ela entreabriu os lábios. Que importa reter-se? O braço dele pedia que ela guardasse seu sono. O rosto dele se fincava bem no espaço quente entre ombro e pescoço. Ela o acolhia.

E se os personagens fossem luminosos, capazes de apagar asperezas e manchas? Um tivesse nascido marcado pelo elemento terra e outro sob a regência dos ventos. Um lento e o outro tormento. Um asceta o outro vida concreta.

Acabou de cruzar os dedos entre os dela. Ele pressente. Ela manteve-se quieta, como quem também adormece. Permaneceu em vigília até que ele se sentisse amparado por braços e pernas. Um sono tingido de esquecimento.

Havia chegado o momento esperado. Ela poderia deixá-lo. Finalmente, sua vontade se moveria sem a contagem das horas e sem olhos para ver. O deserto ocupou a casa. Havia lugar para o segredo aguardado por ela. Andou pés sob pés até a sala. Inundada. Tomou a caneta entre os dedos e dispôs o papel em branco diante do corpo. Com pudor, foi retirando todas as vestes das palavras. Peça por peça. Tremulando em cada tentativa de toque. Estreitando-se ao ponto mínimo de distância entre vontade e linguagem. Uma corrente transforma duas partes em uma só coisa. Deixa-as escorrer até aqui, diante de seus olhos. E você leitor faz parte dos rascunhos de uma estória de amor.

sábado, 14 de março de 2009

selo


Recebi um selo do Fred do blog "nas horas e nas horas e meia". Ao receber o selo, citar 7 coisas que te fazem sorrir:
1) O ato de nascer.
2) O ato de viver em comunhão;
3) O ato de amar;
4) O ato de cuidar,
4) Os atos dos cinco sentidos;
5) O ato de dar e receber;
6) O ato de rir à toa,
7) O ato de morrer com vida.
Indicar 7 blogs que fazem você sorrir
1) Sem mais delongas
2) Insulfilme;
3) Carpe Diem
4) A Torre Mágica
5) Som-cor-ação
6) Infinita-Mente
7) O ser em movimento
Informar aos blogs indicados que eles receberam o selo


quinta-feira, 12 de março de 2009

Comme la vague


Era por volta de oito horas da noite quando o mundo acabou. Maria viu uma réstia de luz cruzar a janela. Feito serenata. A lua estava cheia de beirar de prata os olhos dela. Amendoados, escorridos, que nem melaço de cana recém saído da caldeira. Seus olhos eram fartos e fixos. Um mundo não acaba sem que seja removido um ponto qualquer de sustentação. Houve prenúncios. Estava agitada, assim como o mar. Seus cabelos suspendiam-se arredios, acima da cabeça, tomando a forma de algas enleadas a conchas e pedras. Os fios eram enrolados até quebrarem, um a um. Ela abria e fechava as pálpebras em movimentos contínuos. Suas mãos apertavam à outra, comprimiam os dedos, dobrava-os, até ouvir estalos. Um pedaço de lábio era repetidamente mordido e, e em seguida, experimentado com a ponta da língua. Insônia no quarto dela. Acordes musicais simulavam brincadeiras de fazer dançar o corpo na cama. A voz rouca de Gainsbourg fazia dueto com Jane Birkin

“- Je t'aime je t'aime Oh oui je t'aime. - Moi non plus - Oh mon amour. Tu es la vague, moi l'île nue. Tu vas, tu vas et tu viens. Entre mes reins. Tu vas et tu viens. Entre mes reins. Et je te rejoins.”

A lembrança da mão dele enlaçando suas costas um pouco nuas. O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho. As coxas comprimiam-se insones. Seu ventre se movia até alcançar um lugar de dentro. Achar o ponto, soltar, reter, sem parar. As pernas buscavam um lugar tocado pelo movimento. Calor no corpo dela. A morte é uma presença que emite sinais. Embora se avizinhe como rumor de águas à deriva, em curso de enchente. Maria seguiu a velocidade da luz, mesmo cega. Como já foi dito, o ponteiro do relógio devia marcar umas oito horas de noite. Todos na casa assistiam à novela “Selva de Pedra”. Por tal razão ela recorda o horário em que o mundo parou. Um suor quente, seco, fazia brasa na pele. Em cada lugar, um coração pulsava desenfreado. Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto. Assistiu, sem precisar de olhos para ver, uma explosão espalhar-se para além do seu corpo. Imaterial e nítida. Gritando uma descoberta. Foi quando a mãe bradou: essa menina morreu foi? E Maria respondeu – Morri, mas já passou. Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher.

sábado, 7 de março de 2009

A deusa, os óculos e o milagre

Ismael Nery

Eu penso que sou milagreira. Nunca entendi a razão dos milagres serem domínios de santos e beatos. E que sigam trilhas de registro: devam ser comprovados, encaminhados ao Vaticano e celebrados como verdade. Quando aconteceu meu primeiro fato extraordinário, tinha apenas sete anos. Nunca tentei convencer ninguém. E precisa? Havia acabado de ganhar uns óculos escuros de plástico e um chapéu de couro. O sertão da Jaguaribe embaçava a minha visão. Via o mundo sob um mormaço avermelhado, recoberto de poeira e luz. O catolicismo era a única forma de invocação divina. Eu sabia que havia nascido da promessa que minha mãe fizera a Iemenjá. Era o nosso segredo. Eu tinha uma dupla filiação materna. Enquanto as meninas do colégio de freiras se ajoelhavam e entoavam cânticos e orações para aquela nossa senhora azulzinha com branca, eu buscava outro ponto de visão. Ia delineando-se fora de qualquer altar um vulto de cabelos desalinhados, pés descalços e ondas de espumas de todas as cores adornando seus movimentos. Paradoxalmente, o mormaço do sertão encobria seu corpo. Algo de quente, de visceral, de luminoso tangia essa presença. Ela cintilava uma despudorada alegria. Não ficava parada que nem a outra, aguardando o anjo do milagre. Assim, me conduzia. Ao fechar os olhos, a deusa me tomava às mãos em direção incerta. Do milagre de nós duas. Houve o primeiro.



Atravessei o silêncio e me detive.



Ouvi o piano de minha avó ir deslizando as quatro estações de Vivaldi. Lá fora tudo era inverno! Ela trazia nas mãos a intenção de assoprar música. Feito gaivota. Ao lado do piano uma mulher dançava sem vestes e sem medo. Era a mãe. Embora, tenha vivido um tormento de nascença, trazia verão. Cada átimo de luz cadenciava sua presença. Ao seu lado, uma menina atravessava o tempo. Falava através dos olhos, pernas, orelhas, língua, sexo e umbigo. Tinha uma primavera desenhada no ventre. Fertilidade de acordes musicais. Que nem fruta madura no outono de outro tempo.

Nunca retornei. Permaneci enlaçada às fêmeas de todas as estações. Feito eros, feito borra, feito ventre, fazendo jus a tudo que é inútil e belo. Elas tomam cada um dos meus dedos e escrevem em letras de fogo. A deusa que me habita é mestiça, um punhado de cada uma e um tanto que nem me pertence. Esse é o meu primeiro milagre. O fundador. Por isso, mesmo profano e mundano não seria ele extraordinário? Acredito. Eu sou quatro estações. E você?

terça-feira, 3 de março de 2009

Sentimental eu sou




O nome dele eu não lembro. Todos o chamavam de Teto. Era filho do dentista da casa do lado. Eu a filha do chefe da carteira agrícola do Banco do Brasil que acabara de chegar do Rio de Janeiro. As casas de fachada contínua nos traziam os risos, conversas, choros e segredos de lado de lá. Eu despertava com ecos de sua voz rouca pedindo o leite matinal. Ele era chorão e barulhento. Eu o conhecia através dos sons que atravessavam as paredes. As calçadas margeavam os finais de tarde. Numa delas, sentamos em cadeiras de balanço de vime alinhados numa cena familiar. A radiadora anunciava a próxima música e os olhos de minha mãe marejaram quando a voz do apresentador disse – como boas-vindas para a família que acaba de chegar, ouviremos Altemar Dutra. “Sentimental eu sou, eu sou demais, eu sei que sou assim porque assim ela me faz”. Foi quando escutei o grito costumeiro da vizinha quebrar o idílio do momento - esse menino me tira do sério. Era ele. Suas calças frouxas e pés descalços, a correria desenfreada, um jeito de passar o braço na testa e remover o suor, as maças do rosto tão vermelhas; tudo isso dizia do abismo entre os nossos oito anos. O meu vestido rodado, engomado, me fazia quase estática, uma boneca. Montado num cabo de vassoura ele percorria a calçada que nem vaqueiro tangendo o gado no mato. Eu não estava ali. Queria luz elétrica, os parquinhos de Copacabana, o cinema, os passeios de bonde e o mar brincando de molhar meus pés. Eu desconhecia as veredas do mato. Ele não quis saber, me puxou pela mão e disse - tu quer passear no meu cavalo, eu te levo na garupa. Eu podia muito bem ter lembrado o meu vestido todo armadinho de grude, do meu cabelo de franjinha definida e do sapato de verniz com uma meia bordadinha. Eu podia ter permanecido sentada. Ali eu desenhei o meu destino de mulher. Olhei para o vaqueiro, vi a velocidade do seu cavalo sem cela, nem rédeas, nem direção. Seus olhos verdes de bicho solto, bicho do mato, bicho tinhoso; me fiz correr léguas no dorso do seu cavalo. Eu me tornei a namorada do vaqueiro. Um dia, num passeio de Jipe, nas trilhas incertas do sertão, o meu pai na direção, as crianças atrás; ele passou as mãos por detrás das minhas costas. Tocou levemente as minhas e perguntou baixinho – quer casar comigo? Quando o pipoqueiro de Russas passava e anunciava – pipoca mineral de água e sal, ele corria em minha direção. Corria para evitar que a minha fome de pipoca, adiasse seus planos. Desenhava um olhar grave e me falava - vamos guardar o dinheiro para o nosso casamento. Foram cinco anos. O Teto apenas tocou minhas mãos e entrelaçou dedos com dedos. Apenas derramou seu olhar em correnteza bravia sobre os meus olhos tão atrapalhados e ávidos por luz. Ele me conduziu em seu cavalo indomável, eu aprendi a me deixar levar. Banhou meus pés de ternura e enlevo. Algumas vezes eu tomei a direção e o conduzi alinhado em minhas costas. Ele fechava os olhos e eu o arrebatava em desatino, ultrapassando cercas e matas fechadas. Um dia, fui embora a galope. Dividimos o dinheiro do nosso casamento num final de tarde chuvoso. Na radiadora tocava Rita Pavone, eu dançava em plena calçada, ia até o chão. Ele sabia do que eu era capaz, sempre soube e eu carrego até hoje essa intenção. Por isso, quando você me vê, imagina um cavalo em disparada. Sobe na cela da imaginação. Eu, indomável, te conduzirei. Você deitará tua cabeça em meus ombros, fechará os olhos e dirá: pode soltar as rédeas. E voaremos.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

acordada


Era noite. Um silêncio que fazia tilintar os pequenos gestos. Tua mão adormecia sob a cabeça e tuas pernas enlaçavam as minhas. Eu permanecia acordada. O movimento de tua respiração dizia do profundo do sono. Pequenos espasmos confirmavam a entrega. Eu poderia assim, como quem não quer nada, deslizar minhas pernas nas tuas. Deitar minhas mãos sobre teu pescoço e roçar o canto do desejo. Ir virando-me lentamente, deitando minha respiração quente rente à tua orelha e derramar insinuações. Cada dedo traçaria levemente o caminho da tua boca e te alcançaria. Eu te tomaria por uma das mãos embalando os teus sonhos do meu corpo. Em fluxos e refluxos de marés altas. Leves como convém a um homem que dorme e uma mulher que navega. Com a outra mão te cobriria os olhos. Permanecerias, assim, com um tanto de mim assentada e outro tanto imagem borrada. Retiraria, suavemente, minhas pernas das tuas e me elevaria e te levaria. Em movimentos contínuos de abrir e fechar as portas. Até que toque de recolher nos devolvesse o silêncio dos pequenos gestos. Eu amanheceria.


(para o homem que enxerga, mesmo que faça escuro)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

auto-retrato



O verde fala de mim
A chuva fez esse acontecimento
Tenho a planta dos pés banhada da seiva dos andarilhos
Raízes me assanham os cabelos
Eu vento
Entremeada aos fios de dois
Tenho amor brotado na palma da mão
E um pássaro pousado na testa
Suas asas aninham
Eu me assento
Não tenho vergonha de dizer que sinto
Uma ausência de nascença
Coração semeando intensidades
Amores-seiva respingando pétalas
Flores sem alento
Embora teu amor segure minhas mãos
E a brisa toque delicada as palavras
O susto é disparado
Na vastidão da floresta
Fazendo sempre-verde o sentimento






sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

o carnaval da linha


é quase carnaval. As fantasias foram tiradas das gavetas. Entoa canções no ar que dizem do desejo dos encontros marcados pelo fugidio e êxtase do mistério: “quem é você, adivinha se gosta de mim, hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim”. O amor da passante, da última vista como diz Beaudelaire. A vertigem do explosivo, da potência do que dura e se apaga em segundos. Desfilam nos blocos, nos corpos carnavalescos e nos corações foliões amores contidos, perdidos, rompidos: “alecrim está chorando pelo amor da colombina, no meio da multidão”. Olhares se cruzam e se perdem. São lícitos os beijos roubados. As vinganças de rompimentos e dores ganham passagem no carnaval. “hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria, quero que você me assista, na mais fina companhia, se você sentir saudades por favor não dê na vista”. O carnaval é o compasso do tempo que não espera. A saudade deve ser pintada de alegria, mesmo que no rosto fique cravada a lágrima do pierrô. As ladeiras fazem despencar a alegria e desfazem as mãos:: não se perca de mm, não se esqueça de mim, não desapareça”. A cachaça vira água e a chuva mistura-se ao ‘suor e cerveja”. Bruxas se encontram com piratas, duendes, anjos, capetas, irmãos metralhas, barras de chocolates, cotonetes gigantes; fundem-se no jogo de poder ser outro, por quatro dias. “Eu sou a filha da chiquita bacana, puxei a mamãe (esse ano) não caio em armadilhas”. Subirei a serra nítida como a paisagem. “hoje não tem dança, não tem mais menina de trança, nem cheiro de lança no ar, hoje não tem frevo, tem gente que passa com medo e na praça ninguém pra’ cantar. Minhas máscaras me usam quando fico tímida. Já me pertencem. Eu sou, parodiando Roberto Carlos, uma brincante a moda antiga. Da potência da alegria que faz pinotar desejos dos “cordões de saideira, vendo a vida se enfeitar”. Eu quero brincar no carnaval. E vou. Da Linha da Serra vejo o desfile de paisagens margeadas por cercas-vivas de papoulas. Tão vermelhinhas, tão vermelhinhas! As ladeiras seguram minhas mãos e eu tateio o infinito. “acho que a chuva ajuda a gente a se ver”. E o por-do-sol também. No meus olhos permanecem serpentinas de todas as cores. Eu te vi, você me vê. Sem máscaras. É carnaval. Ah! quase esqueço. Vou fantasiada de borboleta. Você voa comigo?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Argonauta


Trago um olhar vasto
Que nem cabe em oceanos
Sobrevivo navegando linhas

Sou grata às palavras
Elas me produzem terras
Fincadas na palma dos pés

Tenho pressentimentos de gaivota
Diante das asas da imensidão
Embora as alturas me tonteiem.

Aprendi a segurar tuas mãos
Infinitos novelos de chão
E assoprar meu medo
De vastidão

Tu me recebes transbordada
Em teu colo quente
Finca tua âncora
Eu ninho

Quando subir alto, meu bem
Você tem a linha
Segura com a ponta dos dedos

Eu voarei sozinha.

(para a mulher que enxerga)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Navegar é (im) preciso


Atravessei a porta da sala inundada. De quantos sentimentos retesados no ar é feita a poesia? Nem falar, nem escrever iriam diminuir por menor que fosse essa enchente. A Dom Luís estava clara e eu na penumbra. Passei na Bibi comprei um bolo grande salpicado de bolinhas de chocolate, umas bem pretinhas, outras bem branquinhas. Fazem croque-croque na boca. Fui parar mais longe. A roda-gigante do Parque Santo Estevão em Quixadá, a pipoca fazendo eco, o medo das alturas aninhado na mão do primeiro amor. A memória tem trilha sonora. Eu sou uma Dj de lembranças mixadas no presente. “Receba as flores que te dou e em cada flor um beijo meu....” – Deseja mais alguma coisa minha senhora? - Oh coragem dessa mulher! - Quer que eu diga mesmo? A gente não tem sossego. - Ei moça, bota uma empadinha de camarão. Pra’ comer aqui. Melhor assim. Estava tonta de coisas sem cara, sem nome, sem nenhuma posologia do modo de sentir. Acredito que sou boa para definir sentimentos. Camarão é bom demais. O resto eu não sabia. Nem sequer me pertenciam. Permaneci navegando no “Transatlântico” sem navio, sem bóia, sem salva-vidas, sem timoneiro. Deslizando fortalezas. Eu não imaginava de que matéria era feita aquela alegria tão vasta de um além mim. Líquida é que não devia ser. Gasosa. Dessa matéria que deixa a gente flutuando com os pés no chão. Navegar é preciso e eu aposto nos náufragos. De um estado qualquer das palavras. Diluídas, para abrandar as dores no “Chá de Abu”. As palavras, Fernanda, são cousas que nos carregam que nem submarinos? O jardim de Anna Karine é feito de palavras-hera, alastraram-se em meus muros e eu vou buscar outras mudas. As bolinhas de chocolate caem bem nessa manhã de domingo. O sol deixa a paisagem de todas as cores. Minhas linhas içam pipas em novas direções. Elas cruzam com tantas outras no céu de fortaleza. Aqui, me reconheço. Fragmentos saem da gaveta e eu já nem me sinto tão erma. Tenho sentimentos de gratidão em doses altas.

Fayga, Danni e Laura vocês entoam mar adentro as “palavras de pórtico” de Fernando Pessoa:

“Navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar”

Terra a vista!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sob as asas do silêncio (epílogo)


Klimt

Foi preciso um tempo de silêncio e de espera. Não sou uma mulher de meias palavras. Minha história é testemunha do meu gosto por elas. Costumava, desde cedo, subir nos lugares mais ermos e ouvir seus ecos. Ainda criança, escalava o pico de uma serra do Vale do Jaguaribe e lançava nomes de tudo que é jeito para imensidão do sertão. De cima da Micaela gritava os mais bonitos para a minha alegria: Vó Sinhá, Belinha, a burra que me carregava entre os caçoas até o açude e outras vezes, suspirava fundo e empinava a palavra vento. Eu imaginava que ele corria mais veloz por isso. Um dia, colhendo algodão descobri meu tino: sou uma agricultora de palavras. Elas me nasceram e emprenho tantas quantas queiram vir ao mundo. Somos da mesma família. Naquela manhã, quando aquele homem abriu a porta do meu quarto, nenhuma delas veio ao meu encontro. Meu querer por ele era um deserto de explicações. Encontrou-me nua e assim permaneci. Falcão gritou o meu nome da forma tão muda como a minha fome. Meu corpo pressentiu sua visita. Antes de ultrapassar a porta na companhia da massagista, ouvi o eco do seu desejo esbarrar no meu. Entrei no quarto e aguardei a passagem. As mãos firmes da mulher acenderam o óleo na ponta dos meus pés. “Dona Raquel? Dona Raquel?” Olhei em volta e me vi abandonada por qualquer dito capaz de dar o sentido de cancela, de impedimento. Ainda deitada, virei em sua direção e vi o olhar do homem se derramando por cada canto do meu corpo. Ele havia ultrapassado as paredes. Como disse, qualquer palavra despencaria no vazio. Uma delas veio em minha direção, quase em tom de confissão mútua – “Tá doido, ta doido”? – Ele gritava repetidas vezes o meu nome e eu o remetia aquele lugar despovoado – a nossa compartilhada loucura. Falcão abriu a porta e eu calei. Era alta a temperatura. Imediatamente, ele retoma o caminho de volta. Isso ele não disse. Coloquei um vestido por cima do corpo e levantei-me em sua direção. Movida, inicialmente sob o pretexto de adverti-lo, de indagá-lo das razões de sua entrada súbita. Ao sair do quarto percebi o rastro de seu cheiro. Um aroma de mato que após a chuva levanta o mormaço das memórias de um dia quente. Gritei algumas vezes o nome dele. Por um momento imaginei que nunca mais retornaria. E, voltei. De costas ele me tomou pela cintura, suspensa no tempo e disse – me salva! Eu havia perdido o meu plantio de palavras. Que poderia eu falar para o homem que havia me levado ao lugar mais ermo de mim? Fechei os olhos e fiquei. A obra ganhava seus últimos contornos - o criador, a criatura. Ele me conduziu ao décimo primeiro andar. Até o topo. Lá de cima, ensaiei um grito sem nenhuma pretensão de sentido. Foi quando vi um pássaro veloz carregando esse vento. Seu hálito quente ainda sopra no dorso do meu silêncio. Eu escalei essa altura. Daqui de cima me solto e, finalmente retomo o verbo. O eco de tua voz rente a minha anuncia: mulher! Eu ganhei o céu sob tuas asas.