quarta-feira, 20 de maio de 2009

Maria Bonita e o galope do pistoleiro


rédeas soltas
tamanho sem beira
silêncio na ponta da língua
olho certeiro de cangaceiro
compondo a retina

o alvo se esgueira

mãos ao alto
corpo sem fronteira
sussurro sobre ombros
desejo armado da presa
furando vereda

estampido grito do vaqueiro


pernas livres de esporas
cavalo sem cela
galope de dois em desatino
dedos molhados da pequena morte
invadindo a fera

cheiro de fêmea não tem cancela

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Ave rara




Adiantaria dizer, me faltam frases? O bosque fica silenciado ao final de tarde. Logo, logo seremos tomados pelo frenesi do trem da alegria. Da última vez, vi uma criança aos prantos diante do Cascão. Minhas mãos não têm lugar. Eu poderia me tornar catadora de ditos capazes de fazer você se retirar sem sequer olhar para trás. Uma palavra solavanco que acabasse lançando para fora esse sentimento incômodo, esse passageiro sem bilhete. Eu disse adeus em uma sílaba. Você me pediu para soletrar uma sensação sem vestes. Que belo o cenário da despedida! O playground é um convite a olhar para trás. Brincar de gangorra exige pesos em proporção. Fiquei elevada e vi teu corpo assentado rente ao chão. Esvaziado da vontade de partir. Vi também a fita azul dos três pedidos, ainda presa ao pulso. Lembro. Fechei os olhos e firmei cada desejo enquanto você entrelaçava os nós. Não há sinestesia entre nossos signos. Teu ascendente terra fixa a reserva demarcada. Todos os pássaros apreendidos em cativeiro são libertados nessa ampliada área de preservação. De cima da gangorra sigo o bater das asas de uma ave rara. O Urutau se camufla diante dos galhos do frondoso Carvalho. Você sabe que sou capaz de seguir movimentos de vôo e esquecer o risco de te lançar fora dali. A minha fita da sorte há muito se partiu. Eu acho que confundi os pedidos. O primeiro era de viajar de carro por tempo indefinido. Talvez, não fosse. Acabou de passar entre nós o Cebolinha seguido de crianças de todas as cores. O trem parou na estação. A nossa diferença se alinhava desde os primeiros laços. Nenhuma promessa tua fica esquecida. Você é capaz dizer os pedidos na ponta da língua. Bom ver tudo daqui de cima. Deve custar esse ato de sustentar com os pés no chão o peso da partida. O Urutau me fixa o olhar. Ele pode ficar estático por um dia inteiro e não se assustar com qualquer ruído. Somos aves de espécies diversa. Pedir para descer vai agravar a gana de me reter. Minhas pernas doem. Preciso confirmar o rompimento em movimento duplo dos lábios. A-Deus. Houve silêncio de alegria. Pulei em compasso de fuga. O Urutau deslocou-se até o pé de tamarindo. Sem olhar para trás. Eu me banhei de verde. Talvez fosse esse meu último pedido.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A vela, a água e os corpos


A banheira era insuficiente para que as pernas dele e as dela permanecessem paralelas. Ele fez um arco, suspendeu-a e arrastou-se suavemente para que os corpos se acomodassem. A água morna, o entorno branco aguardando cores quentes e a vela acesa compunha a cena do banho. Jatos gentis de água lançavam-se em correnteza pelo dorso das costas dela. A mulher fechou os olhos e sentiu pequenas gotas deslizarem através da testa, embeberem os cílios até seguir o destino da face. Ontem mesmo, fora elogiada por ter olhos de quem promete viagem sem destino. Uma moça do salão de beleza jurou que se fosse dona de uns parecidos, certeza, já teria feito muito estrago por ai. Falou com essas palavras e todas as letras de malícia que ficaram ali implícitas. Por que não? Uma mulher quase nunca sabe do que pode dar passagem. Leva um intervalo de tempo para que se aqueça a água da banheira. O necessário para que os líquidos se agitem e sigam os fluxos. Recostada, ela evocou imagens de fragmentos do corpo do homem. A boca desenhada e farta, mãos de pegada firme e rasteira e um murmúrio de voz que ecoa em pontos diversos da pele. Ela sempre gostou desse jogo de trazer à lembrança o sujeito presente do desejo. Como o eterno movimento lúdico das piscadelas. As coisas mudam de lugar a depender do olho que se abre. O corpo diante dela remexeu-se. Uma porta de visão se entreabriu e pingos de água de alta temperatura acenderam a lanterna da vontade aguardada da mulher. Do lado oposto, o homem que enxerga iniciava movimentos lentos. Havia atmosfera e promessa de dissolução. Os dedos dele percorreram um começo qualquer das pernas dela e seguiram o caminho do fogo. Há um momento em que o mundo acaba e nada mais há de ser dito. Apenas que Norah Jones cantava com sua voz rouca Sinkin’ Soon e que um cheiro de cabaré, espumante, vela queimada e sexo misturavam-se às espumas. Seus olhos guardam os vestígios arranhados dos estragos. Como fios desenhados do desejo entre suas pernas.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

estou participando desse blog coletivo, que considero muito interessante, convido todos vocês a visitá-lo:

http://www.trezentos.blog.br/

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Para além do tempo


Existem continentes vertidos sob meus pés. Eu nunca fui mulher de viver uma só vida. Esse lugar em que agora moro abriga um tanto de outros. Fico aquietada e escuto vozes de fantasmas cruzando portas. Uma fina camada de areia separa porões e sótãos que guardam objetos apartados de mim. Habito um lugar que não alcanço mais. Arqueólogos de um futuro imperfeito encontrarão relíquias de um caso pretérito de amor: cachos enlaçados amarrados em laço de fita, tua voz rouca entoando canção de reconciliação e folhas secas de um dia de primavera. As dobras do desejo criam camadas paralelas de tempo. Ficam vedadas as passagens para outros lados de uma mesma história.

Nesse presente, movo-me sob domínios férteis e gentis. Um amor me tomou as mãos, desvendou o segredo entre lábios e me fez alcançar outra dobra de chão. Preparei um vestido branco de algodão e vou trançar no cabelo flores de jasmim. Até o coreto da praça se enfeitará de música e fanfarra. Quero uma canção capaz de despertar cidades adormecidas. Vou ser a primeira a levantar a barra do vestido e rodopiar. Eu pedi para que minhas amigas e amigos falem bem de mim e de você ao santo protetor de amores nascentes. Ele é Rafael, arcanjo que brinca comigo de vale tudo. Eu digo o nome do desejo e ele me traz a glória. Ganhei um anel com pedrinhas que brilham alegria e confirmam a mulher escolhida.

As vozes de ontem ecoarão em campos vastos de infinitivos verbos futuro: criarei, fecundarei, morrerei banhada de vida. Até que o corpo mova-se em partículas de luz e atravesse barreiras do tempo. O amor dará passagem em ritos de fertilidade. Eu serei terra plantada de colheita farta. Filhos de todos os continentes me prosseguirão. Um vento veloz e aves de arribação espalharão sementes. Estará escrito: ela atravessou cancelas.