segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dirceu de Marília


Dez minutos foram suficientes. Esse absurdo cálculo dos instantes que não constam nas horas. Ela olhou o relógio assim que entrou na estação. O próximo trem logo apitaria e anunciaria redenção. Sair de um lugar leva tempo. Marília antevia o alvoroço dos dias. Ela não arredaria. Nem a alcunha de louca da torre, nem as janelas fechadas com sua passagem a conduziriam para longe da paisagem. O amor é o risível do medo. Quando Antônio se foi, carregou consigo a poesia que cada dia batia à porta da mulher amada. A hora era aguardada. Marília se enfeitava, banhava-se com água de colônia, escovava os longos cabelos e acendia o olhar. Muitos seriam capazes de jurar que havia uma alquimia nos versos que recebia. Ela entreabria o papel, suavemente, passava a língua na resina do envelope dobrado e mastigava letras amorosas em pratos fartos de lira. Mulher quando se sente amada risca sorriso sem motivo nos lábios. Quem acompanhava o farfalhar de suas longas saias subindo ladeiras, podia pressentir o amor que lhe subia às faces. Ela era farta. Ninguém ousaria apontar a loucura que já se instalava, sorrateira, nesse diálogo inexistente. Apenas Antônio fala. Como uma mulher suporta a ausência de um amor que se cala? Loucura deve ser um deserto de palavras de rumo certo restando apenas fragmentos de poesia. Marília soltou os cabelos, deixou o olhar vagar para além da Vila e se vestiu com túnicas soltas ao vento. Seu homem partiu em um barco à vela mesmo sendo eternamente dela. O tempo é tão mensurável quanto o curso de um rio. No alto da estação, letreiros marrons, em alto-relevo indicavam o destino do viajante – Mariana. Ele pularia do trem, tomaria as mãos da mulher já tão cansadas de apertar dedo por dedo e as conduziria até seus lábios quentes. Dez minutos podem unir continentes, mesmo que um trilho imaginário atravesse oceanos. Ela desfez a trança que entremeava os cabelos dourados, deitou-se no banco de madeira ao lado do trilho e fechou os olhos. A Maria-Fumaça estava exaltada naquele dia, fazendo mais alarido que o baticum do coração de Marília. O trem parou e ela continuou deitada por sobre o banco, derramando todo o tempo de espera e de fome. Desespero é palavra que se usa quando nenhum sentimento resolve. Passaram-se um, dois, três, dez minutos e ele não a conduziu de volta à sua encantada lira. Antônio cruzou a África e nunca mais voltou. Dizem que casou com a filha de um mercador de escravos. Pouco importa. Ela continua viva e sem nenhum sinal de onde espera, de onde mora. Os poemas de Antônio vagam por todas as bocas. Marília permanece nos refrões que compõem cada lira de Dirceu. Ela, nunca mais soube dela. Seria isso que chamam de loucura, essa morte em versos?


Para Marília de Tomás Antônio Gonzaga e para todas as mulheres que tiveram seus versos partidos