sábado, 19 de dezembro de 2009

Marluce, o delta e o arco-íris


Um olhar pode alterar o rumo das coisas. Uma interdição mais ainda. Ela entrou no navio gaiola e procurou um local fora do alcance do sol. De pronto armou a rede. Havia tempo em que a vista não alcançava a brancura azulada do delta. A rede era larga, com listras de todas as cores e nas varandas estava escrito: Marluce. Um presente tem outra textura, outro cheiro, outro sentido quando o ato de urdir os fios se prolonga por entres os dedos. Por ter levado um tempo que não se conta o presente de sua avó já trouxe o nome de batismo: arco-íris. Dona Branca entregou a rede à neta e foi revelando a intenção do mimo: para que sua alegria nunca se acanhe. Marluce guardou o presente, intacto, por vinte anos. As pequenas escolhas revelam verdades que ocultamos das salas de visita. Ao se deitar, os dois nomes bordados nas varandas se destacaram em fios esverdeados. Um nome duplamente marcado ganha existência. Curiosa troça do destino. A decisão de ida a Tutóia seguia a vontade de interromper uma infindável repetição; a de ser uma única mulher em toda a vida. Sim. Muitas de suas conhecidas haviam criado faculdades de se desdobrar, de se safar de um nome voltado para fazer bem. Ser sonsa pode salvar uma mulher. A vizinha da esquerda, dia sim dia não garantia seu capítulo particular de novela. Bastava o marido montar a bicicleta de noitinha, paramentado de vigia, que Lindalva acendia. A olhos vistos. Logo depois do presente de avó, Marluce teve o seu primeiro filho, seguido de uma leva. Como se diz no interior – um filho atrás do outro. O tempo não permitia um momento qualquer de suspensão, de omissão. Passou feito raio. Dois dias antes da data do aniversário de quarenta anos a mulher olhou demoradamente o Parnaíba. Evocou as curvas, as margens entocadas de mistério e o encontro com o mar. E navegou. De imediato, foi tomada pelas palavras da avó e se deu conta de que “arco-íris” estava fora da vista, naufragou no fundo do baú. Abriu o lugar de lembranças foi encontrando fragmentos de cores: um bilhete soletrando desejo, um faixa do concurso de miss simpatia e a rede aguardando horizontes. Deslocou-se. E reparou no chocalhado do barco. Era dezembro. A rede próxima da proa descortinava um infinito, largo, vasto e sem moldura para a coisa vista. Sentou-se na beirinha, balançando as pernas e ouviu da moça da rede vizinha: teu nome é Marluce? Ela respondeu: não viu, é arco-íris!