terça-feira, 15 de novembro de 2011

Locomotiva



Apita o trem:
a hora do dor.
É deserto na janela.

O homem da casa
conduz o rumor dos trilhos
indiferente à paisagem.

O homem da casa traz mão vazias
infinitos dedos
de ninar, de morder, de esquecer.

Os vagões da aflição do prazer sem ser
calam gemidos ocos,
Cabeça para trás, cabelos por entre as mãos,
o dueto segue sem destino.

Um homem muito grande,
pode mudar a direção dos ventos.

Vai- vem, vai- vem, pedaço por pedaço.
boca interrompida por mãos,
grita vedada a mentira que revela.
Lágrimas desacertadas,
inundam fábulas interrompidas.

O homem- máquina transpõe as horas.

Passado come inteiro o dia seguinte.
Família invisível na sala.
O mais tarde não vive,
e ninguém vê.
A menina apoucada,
engole palavras.

O que ele fala:
Não diga nada, não conte.
Eu te dou um chocolate Garoto, a última Barbie
te cubro o lençol na hora do adormecer.

(O apito se afasta, a mão guarda a calça,
perene aroma da culpa impregna a sala)

O que ela cala:
Não viajo. Permaneço.
Deito nos trilhos poemas em disparada. E permaneço.
Sob carris de morte e vida.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Epiderme - vídeo poema

Estamos concorrendo ao 5˚ Prêmio Internacional Poesia ao Vídeo no Fliporto Pernambuco.

Aprecie e, se gostar, compartilhe com os amigos:

Epiderme - http://bit.ly/oW1q9i

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Monalisamente




ENCONTRADA
Denuncia o cartaz
Sem recompensa.

Ninguém vê

Embora custe caro
O crime de seguir a risca
Uma vida emoldurada em quadrado

Desconfie

Não há afoiteza de dança, nem embriaguês
Na mulher prendida
Entre laços e fitas.

Siga a sombra

O canto da boca,
Monalisamente,
Risca o caminho da tentação

Use a língua

A natureza silenciosa
Ao fundo
Revela nitidez

Embaralham-se pistas

Lugar algum refugia
O sulco
Do soturno alvoroço.






quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Camélia, a morte e a andorinha.


Um passarinho manco compõe a cena da despedida. Uma pata sim, outra não e duas asas. Houve quem dissesse, que pena. Doente somos nós que temos duas pernas e não voamos. Impaciência com quem só olha pro’ chão. Eu sei que ela esbravejaria e falaria beleza. Exaltaria o cântico livre da andorinha no jardim de muros. Ela, a alegre senhora do ‘107’. (Nunca gostei de números ímpares). Hospital é um lugar fora do mundo.

Camélia nunca teve papas na língua. Em raras tréguas antes da morte, quando o relógio marcava 17 horas, ela descia e devorava três cigarros até a última ponta. Era quando o pássaro assentava ao lado dela. Ele sem uma perna, ela sem suas usuais asas. Foi diante dessa cena de rara beleza que uma enfermeira asseverou: saiba a senhora que está muito doente e não deveria estar aqui. Ela de pronto respondeu – eu deveria estar onde quero, onde todos deveriam estar. Buft! E a moça de branco recolheu-se. Era sua última vez.

Uma mulher diante da morte, um passarinho e a gaguez de quem não consegue tocar a potência da vida. Quem já morreu sabe que o maior sentimento nunca se conta. Camélia não fala mais. Não mais visita o lá fora. No ‘107’ houve até cânticos de despedida. Januária despontou na janela, e Carolina com seus olhos fundos guardou a dor. Compomos uma intensa sinfonia. Calada a morte permanecia. O olhar cerrado de Camélia cravado em nossas retinas. Imersos na direção do nada. Eu vi. A morte não é verbo. Respira-se vida até que ela se cale. Sem possibilidade de composição de nenhum predicado. Mesmo que em algum momento todos ainda cantem. É muda a partida.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O Barão e a Formosa



“Assembléias, multidões!...
Não te iludas a caminho...
Na alcova do coração,
Cada um vive sozinho
.”
(Juvenal Galeno, Trovas do Além)


Cuspiu e praguejou. Feio é se fazer de morto! A calçada fervilha no final de tarde. E ele fica a apreciar o vai e vem da gente conformada com a sorte. Sabe de que modo anda esse tipo criatura? Como se a sina fosse aquela - trabalhar, comer, procriar e mostrar migalhas de coisas que o dinheiro compra. A vizinha do lado passa por ele e faz cara de espanto. Logo ela que daria até a vida para ganhar um cargo na municipalidade e poder mandar em quem quer que fosse. Vendida! Dessa vez ele grita alto sem o contumaz temor de ser tido como louco. Esse é o privilégio dos quase centenários, poder xingar, esbravejar e escarrar verdades, impunemente. Seu Juvenal nem se aborrece. A cadeira na calçada da Formosa deixa entrever que não há mais lugar.

A rua próxima aos bondes, dos passeios elegantes e das prosas demoradas é agora atravessada pelo alarido das buzinas. Progresso. Seu Juvenal pensou – existe sempre um nome bonito para as coisas que tiram o sossego. Com o passar dos anos, cada vizinho foi se recolhendo para os cômodos fechados. Cadê as moças de saias rodadas, dos corpetes generosos, de carmim nas faces? Por onde andam os rapazes que, na calçada do outro lado, exibiam fatiotas engomadas, coletes e lapelas ornamentadas de flores?

A velocidade marca o ato derradeiro do recolhimento. São horas que correm por dentro do cálculo racional do relógio. Seu Juvenal permanece. Cada final de tarde repete o ato de resistência, puxa o assento já roto e segue o movimento. A rua Formosa ganha nome de diplomata e fica deserta de cadeiras. A vista esbarra nos primeiros arranha-céus. Faz silêncio a Lira Íntima dos últimos românticos. Todos passam e ninguém se reconhece. Na Barão, gente é tanta que se esconde. Foi-se o tempo das trovas e das quadras anônimas. Moreninhas passam indiferentes ao apelo – não derramas fogo em minh’ alma gelada. O romantismo se recolhe com os lampiões de gás. Fica cega a cidade e o poeta.



(Uma homenagem a Juvenal Galeno poeta cearense do século XIX pertence à segunda geração do Romantismo. É comumente citado como "o pioneiro do folclore no Nordeste". A poesia de Juvenal extrapola o lirismo de caráter pessoal, para cunhar uma dicção popular, de sabor interiorano, em que retrata o Brasil dos pequenos e dos simples)

quarta-feira, 2 de março de 2011

Poema em correnteza



Imagem- Kandinsky



Chega. Pousa tua mão na minha mão. Tua ausência é nua. Não aprendi a me fazer de louca. Tudo que cometo é pouco. Jogo pedras no oco. Teu amor deita comigo e desperto em vão. Tem urgência o grito que acorda com fome. Vem. Você é cego, criatura? Alicia e se ausenta. Vai como quem fica. Ancora porto inseguro. Zona de conforto é propaganda de avião, de navio, de trem. Eu viajo em alvoroço. Reparou que me descabelo por dentro? Faço caretas, uivo, babo. Calada! Quem disse isso? Quem? Cuidado. Eu enxergo por detrás da máscara. Senta. Trapaça esse modo sonso de me querer correndo. Tenho aclives e declives. Você, nem asas tem. Qualquer derrapagem cai dentro. E, em chamas, finge que foi acidente meu bem.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O primo, o jardim e a espinhela caída



(Uma homenagem a Eça de Queiroz)



Raquel indagou - O que é um desassossego subindo pelas pernas, apertando o estômago e desenfreando o coração? A madrinha-avó de pronto respondeu – menina é espinhela caída. Faltava apenas cinco dias para o aniversário de treze anos e apenas dois para a chegada do primo que vinha do Rio de Janeiro. Raquel calculava cada minuto do tempo. Havia passado três meses, dois dias, 16 horas e alguns minutos do momento em que esse negócio sem nome deu seu primeiro sinal. Depois de algum tempo é que se descobre que as coisas grandes começam sem pretensão.

Foi nas férias de julho, lá na Ilha do Governador, que o furo de um pequeno graveto instaurou a primeira cena. Já vivia chateada com as constantes provocações dos parentes do sul, pois diante de qualquer visão da beleza do Rio, o Cristo Redentor, a Atlântica, um prédio de muitos andares os primos em sintonia cantarolavam Luíz Gonzaga:

“Tenho visto tanta coisa
Nesse mundo de meu Deus
Coisas que prum cearense
Não existe explicação...
No Ceará, não tem disso não, não tem disso não”

Era considerada a prima matuta diante da cidade maravilhosa. Porém, o lugar que permanecerá indelével na memória da viajante é o jardim e o seu segredo. Recorda até do vestidinho de algodão puro, desenhado de florzinhas coloridas, acinturado, meio decotado e com um laço do mesmo tecido amarrando o pescoço. Nessa altura do acontecimento os tios, devido aos banhos diários na praia de Copacabana, já se referiam à sobrinha vinda de fora com o codinome de moreninha. Retornemos ao jardim da vovó da ilha e o seu entorno.

No momento em que a menina brincava de pega-pega com as crianças vizinhas o primo das tantas troças, recém ingresso no curso de medicina, pedia silêncio e distraia-se com a leitura do jornal do dia. Uma cena corriqueira e familiar. Até que Raquel gritasse o socorro que mudaria, de vez, a meninice dos seus pacatos dias. De súbito, o primo solta o jornal e corre até o jardim. Toma a menina nos braços, senta-a na cadeira da varanda e pede para que ela coloque o pé machucado no seu colo. Um ai, ai, ai gemido com gosto compõe a trilha sonora do drama. Ela estica a perna inteira sobre a vista atenciosa do primo até alcançar a calça branca. Enxuga o suor do rosto, passa as mãos molhadas por sobre o vestido, remove a areia do pé e diz – é bem aqui. È quando o primo afasta a vista, desvia o percurso e vai alteando a visão.
Esse é o tempo que não cabe nas horas nem nas palavras. Um breve disparo. Raquel aguarda com paciência que ele remova os resquícios da dor e da descoberta. Ao levantar da cadeira, toma água e percebe a alta temperatura do corpo. Não havia mais suor, o rosto avermelhado pela correria, o ‘desatropelo’ nos gestos. Era um calor calado.


Fim das férias. O retorno à pacata cidade natal. A mãe logo no primeiro momento percebe a estranheza no jeito da menina. Olhar distante, uma desproposital falta de ar e nenhum apetite. Rí em silêncio da ingenuidade da avó e da suspeita da espinhela caída. Uma mulher sabe da outra.

Agora, faltam dois dias, 3 horas e alguns minutos para que o primo chegue de férias ao Ceará. O destino é outro, ele se desloca. Ela conduz o tempo da espera. As horas zombam do desejo. Isso se sabe na mais tenra idade. Por isso até aprendeu a canção. E já não pergunta o nome de um sentimento em desatino. O corpo acordado cantarola e pressente. Há de chover no sertão.

“Qualquer pinguinho de chuva
Fazer uma inundação
Moça se vestir de cobra
E dizer que é distração

"Vocês cá da capital
Me adesculpe esta expressão
No Ceará não tem disso não”

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Suave coragem


Gravura de Juan Miro


Armazeno poesias.
Do inverno ao verão.

E, nem sempre.

Durante um tempo.
Fico límpida, distraída.
Imagino ter partido o vocábulo que exaspera.

Cotidiana, conformo.
Faço um bolo confeitado.
Ralho com os filhos e leio Caras.

Ontem,
Vi os sinais do tempo cercando os olhos
E estirando-se sem vergonha sob a pele.
(Pelo menos não devo nada)

Passado,
É aquele beijo estampado na memória
Lembrar rejuvenesce, sabia?

Na rua, agorinha mesmo
O sucateiro brada “quem tem coisas para jogar fora, que traga”
Uma nesguinha de esperança é resto?

O futuro, não ligo.
E nem ele me olha.
Gosto de limpar gavetas e entregar o que não uso.

E daí?
O desassossego não tem pressa.
O poema já sobe a roda-gigante.

Um presente.
Ganhar na mega-sena e peregrinar...
Nem besta. Calaria, como a coragem disfarçada de medo.

Já vai, já vai, já vai!
(homem apressado!)
Toma. Leva o aço, a cerca, o laço,
Da palavra que liberta.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Longe das horas




Olha o relógio e percebe as horas congeladas nos ponteiros. Estranho, cinco-e-quinze. No fogão, a chaleira deixa um vapor constante. O gato espraiado no tapete dorme imóvel. Uma nevasca se interpõe entre seu olhar e o cenário do quarto. Hesitou. E se aquilo fosse a morte, um congelamento cruel do tempo? Consegue mover-se e examina o corpo. Confirma o que pressentia. Um conluio silencioso barra o escorrer da vida. Dói cada ponto de articulação. Havia permanecido inerte, encaixada em invólucro cerceador de gestos e movimentos. Qual tempo havia parado?

Raquel acaricia os cabelos, desalinhando os fios. Pensa. Embaraça tudo que fica longe das mãos. Curiosamente, incomoda o ouvido esquerdo. Havia uma coisa qualquer impedindo a escuta. Lembrou de uma vez ter lido que os ouvidos não têm pálpebras. Como os seus conseguiram fechar-se à música? Uma cantata de contentamento rompe as cancelas. Vivaldi invade sem pressa a paisagem sonora. Onde se encontrava que havia perdido esse Allegro?

Toca o rosto e imagina enxergar o fantasma de Canterville e os olhos fixos de Wilde. Com apenas uma esfregada essa mancha desaparece? As estórias que lemos vagueiam. Uma porta grande, quase da altura do céu, entreabre. Devia existir um espectro de maldade naquelas visões adiadas, abortadas nos dias do fazer, do correr, do deixar o nome cravado em pilhas de documentos. Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, valei-me Borges, dá-me um mundo sem fronteiras.

Coça aqui e acolá. Uma breve dormência no corpo. Havia sangue o suficiente? L’ Amoroso vai pisando sutil em cada poro. Vivaldi, o padre vermelho, acende a música no corpo das amantes. Assim, será. Um aroma de sândalo, o mesmo que havia experimentado na Catedral de Santiago ativa a circulação. A mulher mira os olhos da fera adormecida e ganha velocidade. Para montar sem cela é preciso conhecer o trote do cavalo.

Fome. As horas não passam. Muita, muita é a fome. Comer a paisagem verde da Linha da Serra. Raquel imagina as papoulas vermelhas e cada pétala tingindo a língua. Faz mal? Deixa pra’ lá. Reimoso, essa palavra que não existe, é ter que proferir certezas desacreditadas, feitas para informar e oficiar. Lamber o mel que flui pela boca, deixar escorrer até o lugar do grito, da gruta. Lute in D Minor de Antonio circunda o ato.

Cinco-e-quinze. Raquel olha as mãos. Vê letras adormecidas no dorso. Algumas sequer existiam no alfabeto. Dispersos signos luminescentes. Pescar era tão bom. Cada movimento das águas e as bicadas sutis de peixes de todos os tamanhos acordam a alegria. Seriam assim com as letras? Colocar o chamariz e ter tempo de aguardar a fisgada do peixe. A ilusão da isca leva à morte. O peixe dá vida ao pescador. É essa a alquimia do verbo.

Já não importa as horas. As quatro estações derramam um pó mágico nos cantos da casa. O gato ri. A chaleira exibe o aroma quente do café. E a mulher se levanta. Lá fora, o relógio ainda marca cinco-e-quinze. Nesse amplo lugar de dentro, lá fora pode ser qualquer hora. Não é?